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Discurso de Emir Sader, na abertura do curso de verão sul sul, na Fundaj,no dia 21 de maio, sobre a Crise Econômica Mundial e a sua repercussão nos países do Hemisfério Sul, como o Brasil

Publicado: Terça, 22 de Mai de 2012, 09h46 | Última atualização em Quinta, 20 de Dezembro de 2018, 21h16 | Acessos: 2667

emir_plateia"Nunca é bom falar de crise, mas nessa crise o Sul tem um lugar um pouco privilegiado. Em geral, as crises nasceram na periferia, chegaram ao centro, e voltaram para nós de maneira arrasadora. Em 2008 a crise nasceu no centro do capitalismo, e pela primeira vez o Sul tem um mecanismo de defesa em relação aos efeitos devastadores da crise começada em 2008 e que a partir de 2011 tem um novo ciclo.

No programa Sul-Sul temos que tematizar muito mais fortemente a idéia de "Sul". Foram eles que nos deram o epíteto de Sul. Como diz o provérbio, “quem parte e reparte fica com a melhor parte”. Não é que seja melhor ser Norte do que ser Sul. Mas é melhor ser Centro do que ser Periferia. E Não é só isso, uma denominação geográfica ou política. É uma qualificação ideológica.

Os colonialistas europeus se apropriaram da idéia de civilização e relegaram ao resto do mundo a qualificação de barbárie. Então não é apenas uma determinação geográfica, é um selo político-ideológico que marca o racismo, a discriminação substancial ao sistema de dominação mundial.

 

A constituição do Sul foi feita a partir do colonialismo, com a chegada dos colonizadores à periferia para incorporar-nos ao processo de acumulação primitiva nas origens do capitalismo contemporâneo. Com o colonialismo tivemos ao mesmo tempo a escravidão e destruição das populações originárias dos continentes incorporados de maneira periférica. O capitalismo chegou aos nossos continentes jorrando sangue. A America Latina é um exemplo particularmente significativo e trágico. Os dois maiores massacres da história da humanidade se introduziram com a chegada dos colonizadores. Destruição das populações originárias e escravidão.

Os primeiros elos estabelecidos pelo capitalismo entre nós foram através da escravidão, o mais brutal crime de lesa-humanidade. Foi assim que fomos instaurados como Sul, como periferia do sistema. Zonas fornecedoras de matérias-primas baratas, produtos agrícolas baratos, mão-de-obra barata, de discriminação, escravidão e eurocentrismo.

O grande pensador palestino Edward Said escreveu uma importante obra que desvenda, decifra e desmascara essa idéia de centro e periferia. De Civilização e Barbárie. De Ocidente e Oriente. A Europa nos amalgama a todos não apenas como o Sul do Mundo. Mas como Os Outros deles. Os Alheios a Eles. A barbárie da civilização deles. O oriente é simplesmente o que não é Ocidente, o que não é civilizado, o que não é Branco, O que não é Anglo-saxão e cristão. É simplesmente o resto. Estão amalgamadas civilizações tão diferenciadas como Japão e Paquistão, Índia e China, Iraque e a Palestina, e assim por diante. Sobre esse lema de civilização e barbárie somos constituídos como Sul. Como “Os Outros” deles. Fornecedores de matérias-primas e mão de obra barata para a construção do capitalismo ocidental.

Um dos temas centrais que devemos acentuar em nossas pesquisas é definir de que maneira cada um dos três continentes somos Sul no mundo. De que maneira especifica cada periferia foi sendo incorporada, reagiu e viveu a situação periférica. A America Latina tem uma particularidade de ter tido independência política no começo do século XIX sob influencia da revolução norte-americana, sob influência da passagem da hegemonia espanhola-iberica para a hegemonia inglesa, enquanto os outros continentes tiveram independência política no fim da Segunda Guerra Mundial. Mas são diferenças secundárias, porque os mesmos mecanismos de dependência de exploração, subordinação e discriminação agiram similarmente em colônia ou em república. Tivemos guerras de independência na America Latina, África e Ásia tiveram movimentos de independência significativos na metade do século passado. E nós emergimos do colonialismo para estar subordinados ao sistema imperial norte-americano.

Nós somos uma unidade porque temos um destino comum definido por eles. Definido pela forma pela qual fomos inseridos no sistema de reprodução capitalista em escala internacional. Na guerra fria fomos marcados pela linha divisória brutal entre duas grandes potências. Qualquer movimento nacional de caráter popular imediatamente era desqualificado como instrumento da subversão internacional e objetivos de caráter soviético ou alguma coisa dessa ordem. Essa marca foi profunda até um certo momento. Depois foi substituída pelo que se convencionou chamar de globalização, quando terminaram os dois campos que haviam dividido o mundo entre si, no fim da segunda guerra mundial.

A globalização significou a extensão de um mercado internacional capitalista sem fronteiras, sem limites. Todas as regiões marcadas pelo então campo socialista passaram a estar incorporadas profundamente ao mercado internacional. Da mesma maneira, qualquer que seja a análise que tenhamos sobre a China, esse país tem uma política econômica de mercado – o que significou ampliar, também naquela direção, o mercado capitalista internacional.

Mais do que simplesmente um mercado capitalista, se constituiu um mercado de mão-de-obra internacional. Liberados das regulamentações nacionais, os capitais puderam se espraiar pelo mundo afora, procurando os maiores diferenciais de exploração da força de trabalho, exterritorializando suas empresas para as regiões mais longínquas do mundo, para produzir as mesmas mercadorias com taxas de exploração e de lucro muito maiores. Esse é o panorama mundial da chamada globalização. A desregulamentação foi sua norma fundamental. Liberar o capitalismo de normas, de regulamentos que dificultavam a livre circulação do capital. Que dificultavam a livre exploração de mão-de-obra em escala mundial.

É nesse marco que chegamos à crise atual. A desregulamentação não significou um novo ciclo expansivo produtivo da economia mundial. Esse é um diagnóstico neoliberal. Houve estagnação econômica no mundo porque havia um excesso de normas que dificultavam a livre circulação do capital. A desregulamentação serviria para liberar o potencial produtivo do capital. Expandiria a produção e todos de alguma forma ganhariam. Esqueceram eles da velha norma daquele antigo pensador alemão que dizia que o capital não é feito para produzir, ele é feito para acumular. Se ele pode acumular mais no setor financeiro, na especulação, ele se dirigirá para esse modelo. Foi exatamente o que se produziu no mundo: a gigantesca transferência de capitais do setor produtivo para o setor especulativo. O setor financeiro sob a forma especulativa. Não para financiar produção, pesquisa ou consumo. Mas para viver da compra e venda de papéis, da compra e venda das dívidas dos países que tenham sofrido crise na passagem dos anos 70 para os anos 80. Da hegemonia do grande capital monopolista passamos para a hegemonia do grande capital financeiro sob a forma especulativa. Mais de 90% das trocas econômicas do mundo não são produção de bens, remuneração de salários. São compra e venda de papéis. Não se produzem bens, não se produzem empregos. Esse é o resultado da desregulamentação propiciada pelo diagnóstico neoliberal.

Não houve um novo ciclo produtivo. Há, sim, uma hegemonia do capital financeiro com um poder brutal de pressão sobre os países fragilizados pelas dívidas acumuladas através dos contratos com o FMI. Os capitais se deslocam para onde tem taxas de juros mais altas, menos impostos, mais liquidez. Esse mecanismo tem comandado o desenvolvimento econômico nas ultimas décadas.  Não houve novos ciclos expansivos. Houve ciclos de hegemonia do capital financeiro e tentativas artificiais de geração de novas demandas (seja através da internet, boom imobiliário etc). Não por acaso, essa crise começou no setor imobiliário, mas imediatamente se transferiu para o setor produtivo e chegou ao núcleo fundamental da economia do capitalismo internacional: aos bancos. O grande diagnóstico da crise, o grande risco em 2008 era a quebra dos bancos. Os vários governos das potencias centrais se uniram para salvar os bancos. Os bancos se salvaram naquele momento e em 2011 o que quebram são os países. E hoje os bancos vão muito bem, obrigado.

O que mudou no mundo das crises anteriores a essa? Houve elementos novos e significativos que fazem com que pela primeira vez o Centro esteja em crise, reitere sua crise, tome remédios que aprofundam sua crise, porque austeridade sem crescimento não cura, mata. Enquanto isso, uma parte significativa do mundo resiste sem entrar em recessão. Diminuímos nosso ritmo de crescimento mas não entramos em recessão. Somos nós do Sul. Países como a China, Brasil, Índia, Argentina, Bolívia, Venezuela, Equador e Uruguai não estão em crise. Como resistimos? Em primeiro lugar, pela extraordinária expansão econômica da China. Pela primeira vez na história da humanidade um país resgata 300 milhões de pessoas da miséria sem ser imperialista, colonialista, escravista. O que quer que se diga do modelo econômico existente é um resgate extraordinário. É um acesso a bens e direitos fundamentais a uma massa impressionante de pessoas. Isso gera demanda, possibilita o intercambio econômico Sul-Sul. Intercambio Industrial, tecnológico, político e econômico.

Grande parte da America Latina optou por projetos de integração do livre comércio. A construção de uma comunidade econômica latinoamericana. Os países do Sul entenderam que o intercambio fundamental é entre os países do Sul do mundo. Por isso que nós resistimos. Fizemos a escolha da não-dependência. Sentimos duramente a retração da Europa, EUA e Japão. Mas temos a expansão e aprofundamento do mercado interno e do consumo popular. Essa é a maior novidade de democratização econômico-social do Sul do mundo. É por isso que esta região Nordeste do Brasil transformou-se na maior base de apoio social desde 2003. Porque foi aqui que se expressou mais claramente a revolução Copernicana. Esta Região, no conjunto de suas demandas, intensificadas nos últimos dez anos, já consome mais bens que a Região Sul do Brasil, tradicionalmente a região com maior nível de renda.

Isso é só uma expressão regional daquilo que está passando em várias regiões do Sul do Mundo. Acesso a direitos mínimos de cidadania para a massa mais postergada da população.

Na America Latina, superamos as pragas do endividamento, das ditaduras militares e dos governos neoliberais. Tivemos retrocessos como desindustrialização, abertura do capital para especulação financeira. Reativação da economia em função do Capital.

Estamos vivendo uma situação paradoxal. Justamente quando estamos mais fragilizados do ponto de vista de competitividade internacional, estamos mais fragilizados diante do capital financeiro internacional, é quando o Sul do mundo consegue reagir melhor. Porque passou por situações insustentáveis. Esse é o elemento novo da crise atual. É o elemento que permite que o Sul possa, deva, acentuar sua integração e a criação de um projeto. O que há de comum entre os países do Sul que superaram suas crises? É expansão econômica aliada à expansão social. O capitalismo sofre o desequilíbrio entre produção e consumo, porque não distribui renda. Suas crises são de superprodução e subconsumo. Estamos conseguindo equilibrar essa equação. É algo elementar, mas nos marca e nos diferencia em relação ao Centro do capitalismo.

As políticas de austeridade são políticas de suicídio, são políticas que aprofundam a recessão, que diminuem a arrecadação, que aumentam o desemprego. Aprendemos essa lição e tivemos a capacidade de reagir, nos recompor e reestruturar. Há 10 anos nossa problemática era a mesma da Espanha, da Grécia e Portugal. A mudança não foi econÔmica, foi política. É isso que permite a mudança de políticas econômicas.

É nesse marco que relações Sul-Sul ganham uma nova conotação. Não só porque e como estamos resistindo, mas como continuar crescendo. Uma parte significativa continua a seguir os ideários neoliberais. Não conseguimos ainda construir forças políticas que possam romper esse ideário. É uma luta enorme, porque temos diante de nós monopólios midiáticos que dificultam saber o que acontece no resto do mundo, através de interpretações falsas e mal-intencionadas.

Nós, pesquisadores, temos capacidade de reflexão para pensar o Sul do Mundo. Está desmistificado o caminho que os centristas sempre nos impuseram. Estamos mostrando que somos capazes. Estamos no epicentro do mundo. Não somos o epicentro da crise. As forças hegemônicas do mundo estão em crise e não há forças hegemônicas alternativas articuladas. O modelo neoliberal está se esgotando e ainda não há um modelo econômico em escala mundial que possa substituí-lo. Nós vamos passar por uma crise hegemônica e buscas por alternativas hegemônicas em escala internacional marcada por turbulências profundas e prolongadas. Da mesma forma que na Europa não é a Grécia a responsável pela crise. Foram os que impuseram à Grécia seguir esse caminho de austeridade.

Hoje, somos nós do Sul os responsáveis por elevar a renda per capta no mundo, o nível salarial, a quantidade de gente empregada na economia formal, o nível de alfabetização, a expectativa de vida das pessoas. São os países do Sul do mundo que estão mudando isso. Hoje em dia temos elementos importantes, uma agenda positiva a tematizar – que acho que tem que ser um dos objetos significativos do nosso programa. Não apenas um intercambio entre nós mas a reflexão. O que significa ser o Sul do mundo? Como transformar isso em um elemento de força e não de fraqueza? Fazer com que muitas regiões do Sul do mundo saiam da passividade e comecem a seguir o caminho certo. Certamente conseguiremos isso através da integração regional. Mas certamente através de governos que priorizem as políticas sociais e não o ajuste fiscal. Que priorizem a distribuição de renda e não uma política de austeridade. Que formulem suas próprias políticas e não importem modelos liberais de fora. Como dizia o Gabriel Garcia Marquez quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura: “Eles reconhecem no Sul a nossa capacidade extraordinária de criação literária, cinematográfica, teatral, de artes plásticas. Mas não querem reconhecer nosso direito de criar o nosso próprio destino político. Nos acham engraçadinhos, exóticos, criativos...na arte. Mas não querem que inventemos nosso próprio caminho na política, na economia, na cultura.

Termino reiterando que o elemento de maior força na dominação do sistema já não é econômico. É ideológico. O elemento de maior presença americana não é seu poderio militar ou econômico. É o modo de vida norte-americano. O American Way of Life, que penetra na China, que penetra na periferia das grandes cidades e tem no shopping Center sua brigada avançada. É a utopia neoliberal construindo uma sociedade onde tudo se vende, tudo se compra, tudo é comércio. Na qual o shopping é a utopia inalcançável para a maioria mas está no horizonte de consumo das pessoas que se deixam levar por esse sonho.

Então, a batalha contra essa utopia cultural é a batalha fundamental do nosso tempo. Provavelmente aí vai se definir o destino do Sul do mundo. Nossa capacidade de afirmação, das nossas identidades, diversidades, particularidades em todos os planos.

Cito agora um dos canalhas que vivem recomendando livros de auto-ajuda que são Best-sellers em todas as livrarias do mundo, e que numa ocasião disse aquela frase vergonhosa: “Mostre-me o Shakespeare da África e aí a gente conversa”. Literatura pra ele é Shakespeare e nada mais. Essa frase percorre o mundo todo. O problema é que os Shakespeares da África não são editados. O que interessa às grandes editoras globalizadas são as literaturas globalizadas. Essas editoras se reúnem uma vez por ano em Frankfurt, decidem quais são os sucessos editoriais dos próximos anos e tem uma máquina infernal de distribuir os mesmos livros para livrarias absolutamente iguais em Hong-Kong e em São Paulo, em Johanesburgo e em Bruxelas, na Cidade do México e na Europa. Ou será que a humanidade de repente decide ler sempre os mesmo livros? Essa é a mão oculta do mercado ou é um brutal monopólio que massacra as culturas do Sul do mundo? Nós somos depositários das civilizações mais antigas, mais profundas,  mais ricas, mais diversificadas. Aquelas que resistiram à dominação, às invasões. Então, o tema da cultura tem que ser o tema fundamental do nosso encontro. Conhecimento, informação, reflexão, identidade, literatura, cinema, dança. Tudo aquilo que faz nós sermos o que somos.

A crise mundial não é de pobreza. É crise de países ricos que não conseguem dar emprego à metade de seus jovens. Então é crise política, de ideologia. Escolheram o caminho equivocado. E nós temos no Sul do mundo alternativas potenciais que precisamos explorar profundamente para poder fazer do século XXI o século do Sul do mundo. O século da democracia. Não queremos ser o Norte no Sul. Queremos que o mundo seja a voz de todos, onde caibam todos os mundos".

 :: Emir Sader é sociólogo e cientista político (doutor em Ciência Política pela USP). Professor Aposentado da USP e Unicamp. É, atualmente, secretário-executivo do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso) e professor da Escola de Verão Sul-Sul, que acontece na Fundaj, de 21 de maio a 1 de junho de 2012.  

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