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MEEIROS DO CACAU SOB AS LENTES DE EMILIANO DANTAS

Criado: Quarta, 18 de Mai de 2016, 12h23 | Publicado: Quarta, 18 de Mai de 2016, 12h23 | Última atualização em Quinta, 20 de Dezembro de 2018, 20h34 | Acessos: 4950

Os meeiros dividem dividem a produção e a terra com os donos das fazendas (Foto: Divulgação)

Por Lara Ximenes

Para o professor de Antropologia James Spradley, a etnografia pode ser definida como “o trabalho de descrever uma cultura, sendo o objetivo do investigador etnográfico compreender a maneira de viver do ponto de vista dos seus nativos”. Esse exercício, segundo Spradley, é uma ferramenta útil para que possamos compreender o modo como outras pessoas experienciam a vida, aprendendo com elas - indo além de apenas estudá-las.

Assim, utilizando os métodos da etnografia como a observação participante e a Antropologia visual, o fotógrafo e antropólogo Emiliano Dantas conheceu os meeiros do cacau do Sul da Bahia para sua pesquisa de mestrado, que começou em 2008, buscando registrar sua história e entender seu modo de vida. Hoje, eles são amigos de Emiliano, que irá expor na Fundação Joaquim Nabuco, neste sábado (21), vinte fotos que compõem a exposição Meeiros do Cacau, que não só retrata a história desse povo como busca “ir além de uma leitura perpassada por estereótipos ligados a exploração, pobreza e desigualdade”, segundo o próprio fotógrafo.

Para Sílvia Barreto, coordenadora Substituta de Exposições e Ações Culturais do Museu do Homem do Nordeste, a pesquisa etnográfica de Emiliano vai além do factual e captura de forma poética representações mais complexas do ser regional. "O Museu quer abrir espaço para artistas e fotógrafos que trabalhem com memória para que possamos expandir o diálogo sobre a identidade nordestina, buscando versões mais complexas do que é ser nordestino. A questão identitária precisa de um aprofundamento maior", acrescenta Sílvia.

Para o Blog da Fundação, Emiliano conta sobre a crise da vassoura-de-bruxa, fungo que mudou a relação dos fazendeiros de cacau e os trabalhadores camponeses, o aprendizado com os meeiros e suas histórias e inspirações na entrevista abaixo.


Blog da Fundação: Como surgiu seu interesse em usar a fotografia para complementar o seu trabalho com a Antropologia?

Emiliano: Desde que ela surge, a Antropologia se incorpora rapidamente à fotografia. Essa aproximação entre as áreas é algo muito antigo, inclusive acho que é por isso que fiquei interessado pela Antropologia, porque é uma área de conhecimento que é vista também por imagem, porque a Antropologia visual é a Antropologia por imagens. Então quando eu optei pelo meu objeto de estudo ser a parceria agrícola familiar, que eu queria entender porque os meeiros não saíram das fazendas e continuavam trabalhando mesmo após a grande crise da vassoura-de-bruxa (fungo que adoece o cacau), eu já fui pra lá sabendo que eu ia fazer um trabalho e uma pesquisa com a fotografia e com todos os conhecimentos e bibliografias que existiam sobre o trabalhador rural. Então o início da pesquisa é uma junção do campo da Antropologia que se incorpora com o estudo da imagem e a utilização dessa imagem ao pesquisar um determinado assunto.

BF: Você se inspira em algum fotógrafo?

Emiliano: Quando estudamos imagem e Antropologia, sabemos que a forma de executar alguma atividade é influenciada principalmente pelas pessoas que nos transmitem conhecimento. O olhar fotográfico eu também acho que vai se desenvolvendo por aquilo que você tem como referência. Ingressei no estudo da Antropologia visual por Pierre Verger, Claudia Andujar, Milton Guran, Luiz Eduardo Achutti e mais uma série de pesquisadores, vendo trabalhos que me inspiraram e são referências. Mas tem uma coisa que é importante: quando a gente faz Antropologia visual, a gente está muito mais num movimento do uso do equipamento fotográfico com uma preocupação de tentar conseguir uma naturalidade, tentar perceber com a máquina o que está acontecendo ali, do que com uma preocupação estética.

BF: Como foi a relação dos meeiros diante da sua câmera, de estrangeiro?

Emiliano: Eu os conheço desde 2008, pois desde esse ano eu venho pesquisando e indo ao Sul da Bahia - onde eu continuo fotografando. Eles são meus amigos, eu sempre vou lá e eu continuo alimentando a relação com eles e o trabalho. Uma coisa é você ser alguém que conhece e outra é ser alguém que vai lá. Quando eu comecei a pesquisa com o processo de observação participante, quando eu passei dois meses morando nas fazendas, eu passava períodos de uma semana a quinze dias em cada uma das fazendas, percebi que a relação com eles mudou. Seguindo os ensinamentos da etnografia e da Antropologia, que diz que é preciso conviver com as pessoas e participar, teve uma hora que deixei de ser o pesquisador, deixei meu equipamento, e fui trabalhar, colher e quebrar cacau junto com eles, e a partir desse momento, trabalhando com eles numa mata fechada, na rota do cacau, que é em terrenos íngremes, com muita pedra, difícil de se movimentar, eu ia fazendo a mesma coisa que eles, mas pedindo para me ensinarem. Aí eles começaram a se aproximar, a brincar comigo de uma forma diferente e as nossas conversas também passaram a ser diferentes. E eu acho que foi nesse momento que a gente se aproximou mais. Eu fiz esse trabalho e eu faço etnografia basicamente com uma única câmera e uma única lente. Eu não levo muito equipamento, eu nunca uso luz artificial, todo o meu equipamento é moldado para que ele tenha uma discrição. E como já tenho essa experiência como fotógrafo, eu a uso para não tornar o ato fotográfico algo inibidor, eu tento usar a câmera de uma maneira mais sutil, tento usá-la nos momentos mais apropriados para ir construindo as imagens sem que os acontecimentos mudem por causa da câmera - é meio que acompanhar o que vai acontecendo e fotografar no mesmo ritmo os acontecimentos. Também fiz entrevistas e caderno de campo, e todos esses outros procedimentos etnográficos. São várias técnicas dentro da etnografia, a fotografia é uma delas. E para mim é a principal.

BF: Por quê?

Emiliano: Porque eu uso a fotografia no meu trabalho para analisar o antes e depois da crise da vassoura-de-bruxa. E quando eu analiso o antes e o depois eu percebo que os meeiros no contexto histórico passaram por uma opressão muito grande, foram explorados pelo trabalho, não recebiam um salário que garantisse saúde, educação e os direitos universais do homem. Eram obrigados a trabalhar em jornadas muito longas, e eles raramente conseguiam ter tempo para fazer as coisas que queriam. Depois da crise, que começou em 1989, quando a vassoura-de-bruxa baixa a produtividade das fazendas de cacau para quase um terço, os proprietários vão à falência, a monocultura do cacau não tem mais rentabilidade e ficam os trabalhadores nas roças, que não vão ser mais empregados - porque não é mais viável que você tenha um empregado ou até mesmo carteira assinada porque a produção é irrisória - e eles começam a se constituir como sócios dos patrões. Teve também a concorrência internacional, porque a Costa do Marfim começa a produzir cacau e o preço da arroba na bolsa cai. Quando fiz esse estudo histórico percebi que antes dessa crise tinha representações nos desenhos, vídeos, paredes e murais sempre dos trabalhadores dentro daqueles estereótipos que é ser visto apenas como um trabalhador. Depois da crise, existe essa parceria, eles se tornam meeiros e dizem gostar mais dessa fase porque eles tinham conseguido a liberdade. Eu percebi que essa ideia de liberdade estava associada ao tempo, a ser dono do seu tempo: a poder trabalhar na hora que você quisesse, a poder ter lazer, construir códigos e reciprocidades, a poder trocar experiências em tardes de conversa. Eles geralmente trabalham das cinco da manhã até o meio-dia, então o resto do dia era para assistir televisão, conversar, tomar banho de rio, era para o ócio. Estudando essas pessoas entendi que existem outras formas da gente viver, e que o campo é por um lado protagonista nesse processo de lutas, as revoluções sociais na América Latina que foram organizadas pelo povo contra os déspotas, por exemplo, têm protagonismo dos camponeses, como as revoluções mexicana e cubana no século XX. Essas pessoas conseguem viver de uma forma diferente da que a gente vive. Uma forma mais conectada com a natureza, que tem uma necessidade bem menor de acúmulo - eles trabalham para viver, para ter o necessário, e não para acumular como a gente da cidade, que tem essa ideia de quanto mais, melhor. Eles vivem de outra forma, apesar deles viverem contradições também, afinal a sociedade de consumo está aí com essa ideia de que você tem que ter e consumir cada vez mais. Eles vivem esse dilema sim, mas no geral têm uma vida mais harmoniosa com menos. Conseguem viver mais com o que é necessário. Eu acho que a exposição é importante por causa disso, porque ela desperta um olhar para o campo, para um passado colonial e o que uma mentalidade colonial pode sofrer: ir à falência, porque o coronel fazendeiro é justamente o oposto disso, ele quer o acúmulo. Então eu acho que é um pouco isso, que a gente pode olhar para o campo e pra outras formas de viver, e que a gente pode criar um respeito pela diferença maior, um respeito que é necessário para a sociedade e o meio ambiente.

BF: Seu interesse em trabalhar com os meeiros foi impulsionado por alguma razão específica?

Emiliano: Foi sim. Eu sou casado com uma baiana lá da região e fui também fazer uma pesquisa lá, pelo Núcleo do Imaginário da UFPE, sobre o candomblé. Quando cheguei nessa região tinha todo o imaginário criado em torno das fazendas, mas algumas que eu fotografei tinham uma estrutura até maior do que a da cidade que elas ficavam. Tinha armazém, loja de tecido, farmácia, açougue, cinema, barbearia... e eu quis ir ver isso mais de perto. E foi assim que eu encontrei alguns remanescentes dos camponeses e eu perguntei “Vocês são trabalhadores?” e eles respondiam, “Não, sou meeiro. Sou parceiro”. Ali eu entendi que meeiro é uma categoria nativa de como eles se chamam, que serve para eles se identificarem em um sistema de sociedade com o dono, que eles podem usar a terra e dividir a produção com esse dono. É mais o menos isso que me chamou a atenção.

BF: Havia alguma ideia preconcebida sua a respeito da região que também foi quebrada?

Emiliano: Eu sempre me perguntava, porque essas pessoas não trabalham de tarde? Se a situação deles é precária - no geral, a educação, a saúde, o transporte são difíceis e há uma dificuldade dos médicos estarem no campo, tanto é que o projeto Mais Médicos vem suprir isso. Então sim, eles têm muita dificuldade, mas quando eu cheguei lá vi que dava meio-dia, eles paravam de trabalhar e iam viver suas vidas. Aí eu ficava me perguntando, porque eles não vão trabalhar mais, para ganhar mais? Porque lá se você produz mais você ganha mais, diferentemente do salário, que é estipulado por lei independentemente de você trabalhar mais ou menos. Mas eu entendi que no passado e na memória, onde eles foram muito oprimidos e obrigados a trabalhar muito, então quando tiveram oportunidade, optaram e escolheram apenas trabalhar o necessário para sobreviver, e ter o ócio, o descanso e a sociabilidade nas horas livres. Eles optaram por outras formas de viver, e não viver para o trabalho, para buscar um excedente e acumular bens.

(Foto: Divulgação/Acervo Pessoal)Mais sobre Emiliano

Emiliano Ferreira Dantas é mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE e Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Fotografia pelas Faculdades Integradas Barros Melo/AESO. Atualmente é professor assistente I na AESO, lecionando disciplinas no Bacharelado de Fotografia, Cinema e Audiovisual e Artes Visuais. Atuou como ConSultor técnico no projeto Inventário Imagético do Museu do Homem do Nordeste-MUHNE/UNESCO. Foi pesquisador e fotógrafo da pesquisa Linha de Montagem da Defesa Social sob Focos de Lentes.

Fez a curadoria do Theória (MUHNE/FUNDAJ), um evento de fotografias que discute imagem, Museologia e ciências sociais. Também foi curador da exposição Cor à Pele, ocorrida na galeria Janete Costa. Expôs individualmente, no Centro de Estudos Martianos, em Havana (Cuba), uma série de fotografias chamada Poéticas visuais sobre o homem natural. Também expôs na galeria Baobá/FUNDAJ, com o tema Presídio Feminino Bom Pastor (Recife/PE) e no Museu da Abolição do IPHAN, uma série de retratos sobre os mestres do Coco do Amaro Branco (Olinda/PE).

Serviço

Exposição Meeiros do Cacau, de Emiliano Dantas

Abertura: sábado (21)
Visitação: até 31 de julho, às 16h
Horários: Terça a sexta-feira: 8h30 às 17h | Quarta-feira: 8h30 às 21h | Sábados, domingos e feriados: 14h às 18h
Endereço: Galeria Waldemar Valença, no Museu do Homem do Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco (Avenida Dezessete de Agosto, 2187 - Casa Forte, Recife
Mais informações: 81.3073-6340

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