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BÁRBARA BALACLAVA: O CONFRONTO COMO CONTRA-HISTÓRIA DO BRASIL

Publicado: Segunda, 19 de Setembro de 2016, 12h23 | Última atualização em Quinta, 20 de Dezembro de 2018, 20h34 | Acessos: 2111

Por Moacir dos Anjos

Ao longo de uma década, Thiago Martins de Melo desenvolveu uma obra em pintura que se afirma, entre atrativa e estranha, como uma das mais singulares de sua geração. Em seus trabalhos, quase sempre feitos em óleo sobre telas de grandes dimensões, não há qualquer lugar para a contida expressão abstrata que marca as obras de muitos pintores brasileiros desde a década de 1950. Tampouco se encontra nela vestígios da representação elogiosa e pacífica de personagens e paisagens nativos, tão cara aos pintores modernistas do país e àqueles que ainda agora animam essa tradição. Suas pinturas, junto às realizadas por poucos outros no Brasil, se assentam em bases distintas, tanto em fatura como em assunto. São feitas de pinceladas rápidas e fortes que acumulam, sobre o suporte usado, tinta bastante para criar, em cores vibrantes, acidentados relevos e planos. Procedimento de construção que o artista julga adequado para lidar com a gravidade e a urgência dos temas que lhe afetam e importam: as violências que os detentores do poder real do país historicamente impõem a quem escape às normas que estabelecem ou desafie os privilégios de classe, cor e gênero de que desfrutam. Em particular, seus trabalhos se debruçam sobre os abusos por séculos cometidos contra as populações de origem indígena e negra no Brasil. São pinturas que articulam e amalgamam forma e conteúdo para narrar histórias dolorosas, fragmentadas e inconclusas. Histórias que não são somente, porém, de aniquilamento do outro subjugado pela força, mas também de resistências.

O fortalecimento da vontade de contar eventos complexos que envolvem muitos personagens e fatos fez com que os trabalhos de Thiago Martins de Melo se tornassem insuficientemente extensos, não importando o quanto crescessem as dimensões de suas pinturas. Passaram por isso a incluir, articuladas ou não às telas, objetos firmados sobre paredes e chão. Esse uso mais alargado do espaço não foi, todavia, suficiente para satisfazer o intento de contrariar histórias dominantes e motivações oficiais, fazendo com que também imagens em movimento fossem gradualmente incorporadas às construções. Tomando as próprias pinturas como arquivo de cenas, o artista passou a articular fotografias de fragmentos delas em curtas animações, abrigando ali o que mesmo telas e objetos de grandes dimensões não poderiam conter. Exibidos em monitores incrustrados em pinturas, esses filmes expandiram no tempo a capacidade narrativa daquelas, tornando-as formas de expressão híbridas e abertas. Bárbara Balaclava dá um passo além na voracidade de fala que a obra de Thiago Martins de Melo exibe, bem como no desejo de expandir os sentidos da produção pictórica mesmo quando esta não está materialmente exposta. Durando pouco mais de dez minutos, o filme edita e anima, de modo acelerado, imagens parciais de quase quatro mil pinturas em pequeno formato e de outras poucas em usual tamanho maior, feitas pelo artista especialmente para serem usadas nesse projeto.

Se Bárbara Balaclava condensa e alarga a ambição narrativa que Thiago Martins de Melo demonstra em sua trajetória, traz inalterada, senão ainda mais firme, a vontade de desafiar discursos que justifiquem ou normalizem práticas de dominação no país. Nesse sentido, o filme pode ser entendido como o esboço de uma contra-história do Brasil, feita mais de sugestões ou pedaços do que de uma fala escorreita e unificada. O que não implica deixar de apontar com clareza, nas torrentes de imagens que se sucedem no trabalho, causas e consequências das desigualdades que fundaram e sustentam o país. O título do filme faz referência imediata às máscaras de tecido que servem para a ocultação das identidades tanto de policiais em ações repressivas quanto, principalmente, daqueles que se insurgem contra formas institucionalizadas de violência social e que precisam se proteger de represálias de quem detém o poder de fato. Máscaras que, em relação aos últimos, servem para resguardar o anonimato daqueles que são considerados párias ou bárbaros por leis e convenções, tal como implicado, não sem ambiguidade, no título do trabalho. Daqueles que se assumem sem rosto somente para lutar, paradoxalmente, por seu direito de ser visto e escutado.

Em edição vertiginosa de imagens – acompanhada de visceral trilha sonora –, Bárbara Balaclava exibe cenas de conflito e confronto nas histórias recente e distante do Brasil. Avança e recua no tempo para deixar clara a longevidade dos processos de dominação violenta que expropria, por séculos a fio, riquezas materiais e simbólicas das populações nativas do país. Movimento temporal que também atesta, em paralelo, os mecanismos de subjugação corporal e psíquica imputados aos milhões de mulheres e homens negros escravizados no passado do Brasil e que, transmutados em aberta ou dissimulada discriminação racial, alcança os seus descendentes atuais. Ao compor esse esgarçado painel social, Thiago Martins de Melo inscreve disputas contemporâneas por terras ou ideias em uma persistente narrativa de exclusões e apagamentos (figurados e físicos) que atravessa a existência do país. Em simultâneo, contudo, mobiliza memórias, crenças, rituais e tudo que resiste à morte e fortalece corpos para contar uma insistente história de insurreição daqueles povos e de todos que com eles tecem alianças e laços. Aproximando tradições e cosmogonias insubordinadas às normas colonizadoras de ontem e de agora, demonstra a continuidade, ao longo dos séculos, de uma potência sublevada que resiste à dor e que desafia a arma. Apresenta guerreiros míticos que são, alternada ou concomitantemente, índios e negros, homens e mulheres, carnais e espirituais, bárbaros e civilizados. Guerreiros que usam outras balaclavas como instrumentos táticos de luta e que combatem um destino que lhes foi imposto como supostamente imutável. É um filme que, na articulação que promove entre pinturas e sons, acende disputas surdas e aponta danos infligidos a uma parcela da população do Brasil. Um filme que, ao fraturar ou subverter o que é dado como estável ou certo, faz a política que é própria da arte.

"Bárbara Balaclava" está em exposição na Galeria Massangana da Fundaj de Casa Forte, de 24 de setembro a 30 de outubro. Mais informações no Site da Fundaj

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