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A propósito da açudagem nordestina

Publicado: Sexta, 05 de Abril de 2019, 15h14 | Última atualização em Sexta, 05 de Abril de 2019, 15h14 | Acessos: 749

Importância dos açudes vai além do armazenamento de água – eles são também úteis no combate a enchentes e podem se transformar em grandes produtores de peixes.

https://reporterbrasil.org.br/2004/03/b-artigo-b-a-proposito-da-acudagem-nordestina/

Repórter Brasil

João Suassuna – Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco

20/03/2004

No rol das alternativas de abastecimento das populações nordestinas, a açudagem é considerada como uma das mais importantes, tendo em vista o expressivo potencial de estoques de água existente em cerca de 80 mil represas da região. Com a recente construção do açude Castanhão, no Ceará, considerado o maior da região (com cerca de 6,7 bilhões de m³), estima-se atualmente um potencial volumétrico da ordem de 37 bilhões de m³ no Nordeste (a represa de Sobradinho no rio São Francisco, com 34 bilhões de m³, está fora dessa estatística), o que o credencia como portador do maior estoque de águas artificialmente represadas em regiões semi-áridas do mundo.

No entanto, diante do cataclismo que se abateu sobre o Nordeste brasileiro em janeiro de 2004, resultado das fortes chuvas caídas em toda a região, e contando com as secas que normalmente ocorrem, advindas de características específicas de seu ambiente natural, algumas questões acerca desse tema exigem maiores considerações.

A primeira questão a ser considerada diz respeito ao dimensionamento das represas, através da compatibilização entre a sua capacidade e o volume escoado do riacho por ela represado. Caso a represa seja de pequeno porte e localizada em um riacho de grande volume de escoamento (subdimensionada), aproveitar-se-á muito pouco da água ali disponível, perdendo-se a maior parte na sangria da represa. Por outro lado, se a barragem for demasiadamente grande e construída em um riacho de baixo volume de escoamento (superdimensionada), ela raramente encherá ou sangrará, o que provoca a salinização de suas águas (a evaporação retira a água, mas o sal permanece na represa) e trará prejuízos para as propriedades situadas a jusante, as quais passarão longos períodos sem receber a água do riacho represado. Represas com essas características normalmente têm águas impróprias para consumo, devido ao alto teor de poluentes que nelas se encontram, seja pela presença de agrotóxicos oriundos do cultivo de hortaliças (normalmente as represas têm o seu perímetro explorado com culturas que recebem altos teores de agrotóxicos), seja pela proliferação de algas causadoras de patologias, a exemplo do ocorrido em Caruaru (PE) com óbitos de pacientes que receberam tratamento de hemodiálise, cuja causa principal foi a presença de uma alga, inicialmente não detectada, na água utilizada no processo de filtragem. No Nordeste, esses problemas vêm se agravando a cada dia, com represas que chegam a passar anos e às vezes décadas sem sangrar, dado o sem-número de açudes construídos na bacia hidrográfica, na maioria das vezes sem a adoção de critérios técnicos que justifiquem a sua construção (o enchimento de uma represa fica na dependência do sangramento das demais existentes a sua montante), e outras que numa simples chuva sangram em demasia, não raro com o rompimento do balde, por não conseguirem reter as águas que chegam em volumes desproporcionais ao seu dimensionamento. Tanto isso é verdade que, em pesquisas realizadas pela Sudene em 1984, constatou-se que 88% de um total de 57 pequenos açudes existentes na região tinham seus sangradouros subdimensionados e que, na bacia do rio Piranhas (RN), na ânsia de fechar boqueirões, mais de 275 pequenos açudes tiveram seus baldes rompidos, tornando-se rotina apelidá-los de “açudes sonrisal”, numa referência à diluição de seus baldes, em razão do acúmulo desproporcional de água na área represada.

Ainda sobre o dimensionamento de represas, acrescentamos um dado: em 1975 a cidade do Recife ficou submersa mais uma vez, devido a uma enchente do rio Capibaribe. Para solucionar, de uma vez por todas, o grave problema das enchentes desse rio, o governo estadual construiu uma sucessão de barragens em pontos estratégicos de sua bacia hidrográfica, com o propósito de conter as águas normalmente vindas em excesso para o interior de sua calha no período chuvoso. A medida teve pleno êxito. Daquele período até a presente data, o recifense ficou livre das mazelas das enchentes. A cadeia de reservatórios construída pelo governo é formada pelas barragens de Carpina, com 274 milhões de m³, Goitá, com 52 milhões de m³, Várzea do Una, com 12 milhões de m³, Poço Fundo, com 28 milhões de m³ e Jucazinho com 327 milhões de m³. Juntamente com a de Tapacurá, com 94 milhões de m³, essas barragens têm capacidade de conter até 787 milhões de metros cúbicos de água no período das chuvas. Em 1975, só havia a barragem de Tapacurá. Hoje, o Recife conta com uma capacidade de contenção quase dez vezes maior do que aquela existente em meados da década de 70. No entanto, uma vez solucionado esse problema, alertamos as autoridades para uma questão com a qual poderemos vir a ter certos constrangimentos. Diferentemente das barragens de acumulação, que são construídas para fins de abastecimento das populações e para o uso na irrigação, as de contenção têm que operar vazias, para, em caso de necessidade, virem a alcançar os objetivos para os quais foram construídas, quais sejam, o de conter os volumes causadores das enchentes. Uma vez passado o período chuvoso, deve-se proceder à descarga desses reservatórios até ficarem novamente vazios, para estarem aptos a novas contenções no próximo período chuvoso. Ocorre que, na crise de abastecimento d´água sucedida até bem pouco tempo no Nordeste, as águas dessas represas estavam sendo utilizadas no abastecimento das populações, pondo em risco o processo de defesa do recifense nas investidas de novas enchentes. A prova disso aconteceu com o dilúvio havido no mês de janeiro no Nordeste. Essas represas, por estarem com certo volume de água, sangraram repentinamente, fazendo com que o sistema de defesa do Recife se tornasse vulnerável. Apenas a represa de Carpina – a última numa cascata sucessiva de represas até a chegada das águas do Capibaribe ao Recife – não sangrou, mas faltou muito pouco para isso. Se porventura as chuvas tivessem continuado a ocorrer por mais uma semana na intensidade então verificada, a represa de Carpina teria sangrado e o Capibaribe iria seguir seu curso normal, como se não existissem as represas. O resultado disso seria a ocorrência de novas enchentes na capital pernambucana, com as conseqüências já conhecidas por todos.

Todas essas questões nos levam a refletir sobre a necessidade de serem estabelecidas políticas para o uso racional das águas das represas nordestinas. O Estado do Ceará, por exemplo, saiu na frente, através do trabalho de interligação de suas bacias, trabalho esse que deveria ser copiado por todos os demais Estados nordestinos. Somando-se todo o estoque hídrico de superfície, o Ceará conta atualmente com um potencial de acumulação da ordem de 17 bilhões de m³, correspondendo a aproximadamente 50% de todo o potencial de acumulação das represas nordestinas. A idéia da interligação é suprir, naquele Estado, regiões hidrologicamente carentes, com águas provenientes de regiões com maiores possibilidades de fornecimento e, com isso, resolver o problema do desabastecimento que se arrasta por séculos na região.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito à conveniência ou não de utilizar a água dos pequenos açudes para a produção de alimentos, através da irrigação, caso essas fontes sejam as únicas existentes nas propriedades. Estudos realizados sobre o assunto comprovam que, através do potencial evaporimétrico existente no Semi-Árido, os açudes chegam a perder 2 metros de lâmina d´água por ano. Com essas características climáticas agravadas, ainda, pela retirada de águas para uso na irrigação, invariavelmente a maioria dos pequenos açudes chega a secar. Diante desse fato, cria-se um impasse: o que é mais viável técnica e economicamente, produzir alimentos com as águas de um pequeno açude, mesmo sabendo que ele venha a secar, ou utilizar suas águas apenas para fins de abastecimento, gerenciando seus volumes até a chegada de novo período chuvoso, numa tentativa de preservar uma fonte que é vital para o homem e tudo que o cerca? Essas questões realmente necessitam de um maior aprofundamento nas discussões. Finalmente, vem a necessidade de se incentivar a produção de peixes em tanques-rede nos lagos das hidrelétricas, o que pode levar o Brasil a uma posição de destaque na produção de pescados, devido ao grande potencial existente. O país tem hoje mais de 5 milhões de hectares alagados pelos reservatórios das usinas hidrelétricas. Usando apenas 1% dessa área, o país tem condições de, no futuro, ultrapassar os grandes produtores mundiais de pescado. Usando-se o potencial dos reservatórios das cinco maiores hidrelétricas brasileiras (Furnas, Itaipu, Três Marias, Sobradinho e Tucuruí), que juntas mantêm um espelho d´água de cerca de 1 milhão de hectares, podem-se produzir até 15 milhões de toneladas de pescado – quase 15 vezes o total da produção nacional, estimada em 2003 em cerca de 1,05 milhão de toneladas. No Nordeste, além de Sobradinho, existem os lagos formados nas hidrelétricas do complexo gerador de Paulo Afonso e Xingó que poderão contribuir significativamente na produção do pescado no cenário regional.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.

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