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TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE: a água irá chegar em locais onde ela já é abundante.

Publicado: Segunda, 08 de Abril de 2019, 10h16 | Última atualização em Segunda, 08 de Abril de 2019, 10h16 | Acessos: 1105

João Suassuna - Eng° Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco




Cachoeira da Paulo Afonso

Mais vale preservar uma gota d'água que seja do São Francisco hoje, do que derramar uma lágrima por ele chorada amanhã, mesmo que sincera (poeta penedense desconhecido)


No Nordeste brasileiro, o Rio Grande do Norte (RN) é um dos poucos estados a possuir significativas reservas hídricas em seu território. Detentor de uma área sedimentária expressiva e rica em água de subsolo (arenito Açu, localizado na Chapada do Apodí e sistema dunas-barreiras, no seu litoral) e da segunda maior represa da região (represa Armando Ribeiro Gonçalves, com potencial de acumulação em torno de 2,4 bilhões de m³), o estado tem autonomia suficiente para uso dos recursos hídricos, pelo menos nos próximos vinte anos. Essa projeção faz parte do primeiro Plano Estadual de Recursos Hídricos - I PERH, o qual foi contratado pelo Governo Estadual à empresa HIDROSERVICE, consubstanciando-se num marco referencial no processo de planejamento do aproveitamento múltiplo, controle, conservação, proteção e recuperação dos recursos hídricos do RN.

Esse Plano, que avaliou as suas potencialidades e disponibilidades, identificou as alternativas de infra-estrutura hídrica viáveis e definiu um programa de ações para a gestão dos recursos hídricos, concluindo que, no RN, não há requerimentos extraordinários de volumes de perenização, e que as demandas para consumo humano e animal, existentes nos cenários por ele simulados (normal e seco), não apresentam déficits hídricos relevantes. Para se ter uma idéia do significado dessas questões, o rio Apodí, por exemplo, não necessita de ingressos hídricos oriundos de outras bacias antes do ano de 2020, a não ser que se implantem grandes projetos de irrigação a jusante do açude de Santa Cruz; o abastecimento de água da região de Mossoró, até o ano 2016, será atendido pela adutora Mossoró, que retira vazões do reservatório Armando Ribeiro Gonçalves; o volume útil do reservatório de Santa Cruz permite atender às demandas a ele atribuídas até o ano 2020; não há déficit ao longo do rio Piranhas-Açu até o ano 2020 e, aproximadamente, 90% do déficit total está concentrado na sub-bacia do Rio Seridó, a qual não será contemplada com as águas do São Francisco.

Levando-se em conta essas projeções, o projeto de Transposição de Águas do São Francisco passou a ser visto no RN sob duas óticas: a primeira, defendida pelos estados doadores, afirma que o rio São Francisco não estaria, atualmente, em condições efetivas de atender às demandas do projeto e, portanto, a captação de suas águas deverá concorrer para o agravamento do quadro atual de degradação ambiental em que se encontra o seu vale e a segunda, em oposição a primeira, assumida pelo Governo Federal e pelos estados receptores, defende a realização e a importância da obra e assegura que o projeto irá levar água do Rio São Francisco - que representa, por si só, mais de 70% das reservas hídricas do Nordeste - para os estados que não dispõem de rios perenes em condições naturais, como é o caso dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará, ressaltando que a obra irá democratizar o uso da água na região.

Visando subsidiar o debate dessas questões, foi criada, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, uma comissão que, levando em consideração as questões acima referidas, procurou responder outras indagações que dizem respeito à real importância da obra para os estados receptores e ao atendimento das expectativas que têm sido geradas nas discussões atuais sobre o projeto.

À luz dos estudos da comissão, chegou-se à conclusão de que a Transposição vai modificar muito pouco a realidade do Semi-árido. A ampliação da oferta de água vai atingir menos de 5% da área castigada pelas secas. A vazão média prevista no projeto irá viabilizar a irrigação de uma área menor do que os 300.000 ha estimados pelo Ministério da Integração Nacional. De acordo com a avaliação da comissão, se for implantado da forma como está, o projeto da Transposição poderá onerar bastante o custo da água, o que resultaria na apropriação privada dos recursos hídricos da região. A operação e manutenção da obra poderá ficar a cargo de um consórcio privado que, evidentemente, cobrará tarifas aos usuários das águas do São Francisco. Com relação ao RN, o estudo afirma que existem carências no estado, mas considera inadmissível o comprometimento dos recursos financeiros previstos (estima-se em R$ 20 milhões por ano) numa obra caríssima, que ainda não tem uma comprovação técnica com garantias de retorno em termos de qualidade de vida da população. Além do mais, as águas do São Francisco chegarão ao RN em dois ramais: o ramal leste, no açude de Pau-dos-Ferros, para o atendimento da região do Apodí, e o ramal norte, na represa Armando Ribeiro Gonçalves (represa do Açu), para o atendimento da região do Baixo Açu. O fato curioso é que as águas do São Francisco (15 m³/s) irão ser transpostas para as regiões do Estado onde já há água em abundância, conforme mencionado no início desse relato (águas de subsolo no Arenito Açu na Região do Apodí e as águas represadas na segunda maior represa do Nordeste). A represa do Açu, por exemplo, tem garantido uma vazão regularizada no Rio Açu, relativamente constante, em torno de 12 a 14 m³/s. Com a metade dessa vazão, pode-se atender a um consumo ideal diário de 200 litros por habitante, toda a população do RN. Por outro lado, a região do Seridó, considerada a mais carente do estado em termos de recursos hídricos, não será contemplada com as águas da Transposição.

Para o abastecimento humano, o I PERH estimou, com base na tarifa efetiva praticada pela CAERN e considerando apenas 20% de perdas, um custo da ordem de R$ 1,00 por m³. Para o uso na irrigação, foi estimado nos projetos, um custo de R$ 0,04 por m³, a ser cobrado para compensar as despesas de operação e manutenção e os gastos com energia. Na ótica da comissão, esse valor é muito alto, se comparado ao benefício líquido apurado nos atuais projetos de irrigação no estado, tendo em vista que a renda líquida atual do agricultor, apurada em lotes irrigados, é da ordem de R$ 0,064 por m³, no caso de áreas inseridas nos projetos públicos e de R$ 0,069 por m³, no caso de projetos particulares. Já os custos das águas transpostas do São Francisco, avaliados pelo I PERH, foram de R$ 0,50 por m³, considerando nesse total o custo de manutenção de R$ 0,05 por m³ e o custo de amortização igual a R$ 0,45 por m³. Nesse sentido, a Transposição no RN tem a sua importância claramente reduzida, tendo em vista a auto-suficiência do estado, em termos de água para beber, com recursos hídricos locais e os custos proibitivos da água do São Francisco para uso na irrigação.

Finalmente, cremos que é chegada a hora de se fazer um amplo debate sobre essas questões junto à comunidade para se avaliar a pertinência ou não da realização do projeto transpositório. Aliás, será a população que, futuramente, irá pagar a conta do projeto, quer usufrua ou não da água do Velho Chico.


Recife, 6 de setembro de 2000.

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