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SUBSÍDIOS PARA FORMULAÇÃO DE UM PROGRAMA DE CONVIVÊNCIA COM A SECA NO SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO

Publicado: Quinta, 04 de Julho de 2019, 10h27 | Última atualização em Quinta, 04 de Julho de 2019, 10h27 | Acessos: 360

Por Clovis Guimarães Filho; Paulo Roberto C. Lopes (2001)

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Em função da profunda diversidade de condições agroecológicas e sócio-econômicas que caracteriza a região semi-árida e da extrema complexidade que envolve a natureza dos fatores responsáveis pela condição de pobreza das comunidades que nela habitam, a concepção de um programa de convivência com a seca requer, antes de tudo, uma visão abrangente na definição do caminho a ser seguido. A sua execução, portanto, exigirá uma ampla ação cooperativa transdisciplinar e multiinstitucional. A base para o desenvolvimento econômico e social do semi-árido e, por conseguinte, o conviver com seca, não deve se limitar ao desenvolvimento da atividade agrícola. Este deve estar associado ao crescimento das atividades econômicas rurais (agrícolas e não agrícolas) que se desenvolvem fora da unidade produtiva. A estratégia deverá ser o fortalecimento da natureza pluriativa do espaço rural, explorando as potenciais sinergias entre o setor primário e os demais setores da economia.

Dentro dessa perspectiva, é possível identificar alguns aspectos ou linhas principais de ação que devem ser seguidas na busca de sistemas produtivos ou formas de uso, agrícolas e não agrícolas, que não apenas se harmonizem com o meio-ambiente do semi-árido, mas que, também, sejam capazes de propiciar, a custos competitivos, uma oferta estável de bens e serviços para um mercado cada vez mais exigente. Definitivamente, isto não é uma tarefa fácil.

 

As ações principais a serem consideradas na concepção de um programa de convivência com a seca devem estar incorporadas às seguintes etapas, não necessariamente sequenciais, componentes do processo:

 

  • Recuperação e preservação dos recursos naturais
  • Reordenamento dos espaços agroeconômicos
  • Fortalecimento das estruturas locais de produção

 

Não desconhecendo o grande potencial e o importante papel das atividades não-agrícolas no cenário econômico do Semi-Árido, como ecoturismo, artesanato e mineração, este texto se limita a abordar as ações necessárias a um programa de uso sustentado dos seus recursos, sob a ótica dos sistemas agroalimentares e agroindustriais desenvolvidos em condições de absoluta dependência de chuvas.

            A seguir são apresentadas as principais ações dentro de cada uma dessas linhas citados alguns pontos considerados como merecedores de maior atenção no processo de discussão.

 

RECUPERAÇÃO E PRESERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

Esta linha pode ser considerada como a mais urgente, considerando-se o atual processo de degradação a que estão sendo submetidos os recursos físicos e bióticos do semi-árido. As principais ações voltadas para reverter esse processo compreendem dois aspectos. O primeiro, concernente às ações de recuperação propriamente ditas, e o segundo, concernente ao estabelecimento de um sistema que monitore e avalie esse processo, assegurando a sua perenidade. As ações ligadas ao primeiro aspecto começam pela recuperação e de implantação de um sistema de utilização racional das grandes bacias hidrográficas do Nordeste, São Francisco e Parnaíba. .É uma medida já bastante discutida no que tange à sua necessidade e bem equacionada em termos dos tipos de ação a serem implementados ao longo desses rios e de seus afluentes. Estes incluem, principalmente, a recuperação da mata ciliar, desassoreamento, redução da contaminação por efluentes urbanos e agrícolas e o combate à pesca predatória. Ações análogas devem ser estendidas a todas as demais bacias da região, incluindo as micro-bacias, procurando-se acelerar os processos de criação e operação dos comitês de manejo de bacias, pelos estados e municípios, conforme já previsto em legislação federal.

 

O “Sistema de Abastecimento Hídrico para Uso Múltiplo”, uma proposta da CODEVASF que visa a utilização integrada de todas as fontes de recursos hídricos da região, internas e externas. Esta proposta, juntamente com o sistema de “açudes dinâmicos”, baseado na interligação de bacias hidrográficas, em implantação no Ceará, são exemplos de propostas mais amplas e concretas de que merecem uma análise prioritária e, em caso de avaliação positiva, medidas efetivas para início imediato de implantação.

 

Paralelamente, deve ser implementado um amplo programa de expansão da oferta de águas superficiais e subterrâneas e de incremento na eficiência de seu uso. A ação, entre outras medidas, deve abranger:

 

  • Construção de açudes, barragens sistema base-zero, barragens subterrâneas, poços amazonas e pequenas adutoras - o sistema base-zero consiste em barramentos horizontais, de pedra solta, em forma de arco-romano, capazes de reduzir o impacto da velocidade de escoamento e de reter grande parte do material que desce com as enxurradas, com formação de pequenas áreas agricultáveis;
  • Recuperação de 45 mil poços tubulares fora de operação existentes (45% da rede total) e perfuração de poços, com ênfase especial no aproveitamento do potencial de águas subterrâneas das bacias sedimentares do semi-árido, hoje sub-utilizado;
  • Implantação de sistemas simplificados de captação, armazenamento e uso econômico da água de chuva, tipo calhas de captação em telhados, com tanques-reservatório ou cisternas, que poderiam, inclusive, ser incluídos, obrigatoriamente, nos financiamentos - devem abranger, também, os pequenos núcleos urbanos rurais e não apenas as propriedades (um maior apoio ao programa de um milhão de cisternas desse tipo, em desenvolvimento pela Articulação do Semi-Árido (ASA), é uma providência altamente recomendada);
  • Implantação de programas específicos visando aumentar a eficiência da irrigação, da estação de captação à parcela de cultivo, nos perímetros públicos e privados, abrangendo também os sistemas de pequena irrigação ao nível de propriedade;
  • Estímulos à aplicação dos principais métodos disponíveis de redução de perdas d’água por escoamento superficial (“run-off”), evaporação e percolação e, especialmente, ao desenvolvimento de métodos de reutilização da água;
  • Estabelecimento e financiamento mais simplificado de linhas de pesquisa visando elevar a eficiência das alternativas mencionadas e identificar novas alternativas potenciais (um exemplo dessas demandas seria o estudo visando a expansão do uso das cisternas, através de sistemas mais eficientes de captação, permitindo um mínimo de água para viabilizar hortas domésticas).

 

Outra medida que deve ser considerada, nesta etapa, é a reformulação na concepção dos novos projetos públicos de irrigação, visando integrar as áreas irrigadas com as áreas de sequeiro. A categorização do produtor no acesso à água é um procedimento que permitirá multiplicar expressivamente a área beneficiada pelos projetos públicos de irrigação, hoje limitadas a verdadeiros “ghetos” de riqueza rodeados de “favelas” de pobreza e de subdesenvolvimento (só Pernambuco tem 400 km de margens de São Francisco e a Bahia, considerando as duas margens, conta com mais de 4 mil km). A idéia a ser analisada teria por base o estabelecimento de anéis diferenciados de oferta de água, permitindo incorporar áreas mais extensas e integrar as áreas irrigadas com as de sequeiro. Sinteticamente, uma nova concepção contemplaria um anel ou núcleo central onde os beneficiários teriam acesso permanente à água de irrigação para cultivos intensivos; um segundo anel, maior, onde a água seria disponibilizada apenas para cada produtor irrigar uma área muito restrita (0,5 a 1,0 hectare), preferencialmente com forragens de alta produção, para assegurar uma pecuária com níveis satisfatórios de produtividade; um terceiro anel, ainda maior, teria disponibilidade de água apenas para fins de consumo humano e animal. Os três anéis se complementariam em termos de troca de benefícios (restos de culturas, matéria orgânica, oferta de mão-de-obra e serviços, acabamento de animais e outros).

 

No que tange ao segundo aspecto, um eficiente sistema de monitoramento ambiental é fundamental para que todas essas ações sejam conduzidas de uma maneira segura e para que possam ser procedidos os ajustes e correções necessários à perenidade de seus resultados. As ações relativas ao sistema de monitoramento devem compreender, entre outros aspectos:

 

  • Adequação do IBAMA, ou de outra instituição pública, à essa missão, compreendendo a formação de quadros técnicos efetivamente qualificados e quantitativamente mobilizáveis para ações em pontos estratégicos do Semi-Árido;
  • Estruturação de um sistema efetivo de monitoramento da qualidade da água e dos ecossistemas aquáticos com coordenação a cargo dos comitês de gestão das bacias e apoio técnico da CODEVASF, secretarias estaduais de recursos hídricos e universidades;
  • Estabelecimento de um amplo programa de educação ambiental, tendo por base a reestruturação e o fortalecimento das escolas rurais, através da adequação curricular e do calendário de atividades à realidade agroecológica e sócio-cultural de cada microrregião ou comunidade (já prevista na legislação educacional de alguns estados) - a formação adequada do jovem rural é pré-requisito indispensável para a consecução dos objetivos de qualquer programa de convivência com a seca

 

Por outro lado, o exercício de práticas adequadas de convivência com a seca não exclui a possibilidade de ocorrência de períodos cíclicos de estiagens mais prolongadas, embora possa propiciar uma acentuada redução nos seus efeitos. A convivência também com tais períodos impõe o estabelecimento de dispositivos técnicos e organizacionais eficientes e ágeis na previsão de sua ocorrência e na mobilização dos recursos de apoio, tanto os disponíveis, quanto os recursos adicionais que se fizerem necessários. Tais dispositivos devem incluir:

 

  • Implementação de serviços de monitoramento climático mais eficientes que os atuais, incorporando um sistema de previsão meteorológica com funções de alerta de estiagens mais prolongadas;
  • Criação de comitês municipais ou intermunicipais a quem caberia a coordenação das ações de enfrentamento, prontamente mobilizáveis ao alerta de iminente ocorrência de uma estiagem mais severa (esses comitês de enfrentamento emergencial de secas devem congregar poderes emergenciais de monitorar e avaliar a dimensão e abrangência do fenômeno e de coordenar o uso estratégico dos recursos, a mobilização de parcerias e o procedimento de ações que visem, entre outras, a garantia de suprimentos estratégicos e o não aviltamento dos preços dos produtos locais).

REORDENAMENTO DOS ESPAÇOS AGROECONÔMICOS

A heterogeneidade da região implica heterogeneidade nas soluções. As estratégias tecnológicas a serem levadas para cada espaço, portanto, têm que ser diferenciadas. O zoneamento dos espaços agroeconômicos, indicando os espaços próprios para cada atividade, com o conhecimento acabado de suas limitações e potencialidades, valorizando as especificidades locais, constitui, portanto, um passo indispensável para subsidiar o direcionamento das políticas públicas de apoio ao segmento.

 

            A diversidade da região implica a existência de espaços indicados para as mais diversas formas de uso, agrícolas e não agrícolas. Considerando apenas as agrícolas, é possível afirmar que o Semi-Árido inclui espaços onde a agricultura irrigada é a alternativa mais indicada, embora esses espaços sejam apenas uma fração muito pequena da área total (2% do Semi-Árido) Há espaços, também, onde é possível se fazer uma lavoura dependente de chuva com razoáveis chances de sucesso (“ilhas úmidas”, brejos de altitude). As maiores extensões são indicadas, contudo, para a atividade pecuária, com zonas onde seria possível uma pecuária menos extensiva, a base de pastos cultivados, e zonas para uma pecuária um pouco mais extensiva, associada à exploração da caatinga, dentro de um enfoque de múltiplo uso (extrativismo de madeira e energia, apicultura, frutas nativas).

 

Há ainda porções significativas, de ecossistemas mais frágeis, onde a indicação estaria limitada às atividades de preservação e proteção da flora e da fauna silvestres. Em alguns desses espaços despontam, também, potencialidades ligadas à exploração mineral (gesso, fosfato, cobre, gemas, pedras ornamentais) e ao ecoturismo (parques ecológicos, sítios arqueológicos, históricos, espeleológicos e muitos outros vinculados a valores estéticos e culturais). Não seria demais afirmar que em uma parte significativa do Semi-Árido existem condições bastante favoráveis para a consolidação de um eixo econômico agricultura irrigada-caprino e ovinocultura-ecoturismo-mineração.

 

            Levantamento preliminar indica que no Semi-Árido há cerca de 16 milhões de hectares (16%) com bom potencial agrícola, 43 milhões de hectares (44%) com potencial agrícola limitado, mas passíveis de exploração, sob determinadas condições, e cerca de 35 milhões de hectares (36%) com fortes restrições, praticamente inaptos ao uso agrícola.

Zoneados os espaços para cada atividade econômica, ou combinação de atividades, há ainda que equacionar o problema dos ajustes fundiários em função da vocação e das necessidades de cada atividade econômica indicada. O reordenamento fundiário, com base na implantação de novos assentamentos da reforma agrária, é, sem dúvida, o de solução mais complexa, porém, fundamental para que as potencialidades dos sistemas indicados possam efetivamente se expressar. Não é possível, contudo, continuar com distribuição de parcelas inferiores a 200 ou 300 hectares por assentado em pleno Semi-Árido. É perfeitamente possível uma família viver condignamente em 02 ou 03 hectares de terras, desde que seus cultivos sejam irrigados. Infelizmente, apenas cerca de 2% da área total dispõem de condições de solo e água para tal.

 

Nas áreas da Depressão Sertaneja, as mais secas do Semi-Árido, onde a criação extensiva de caprinos constitui a alternativa predominante, são necessários pelo menos de 300 a 400 hectares para manter, em condições exclusivas de caatinga, um rebanho de corte com 200 matrizes. No caso de produção de leite, alternativa de maior complexidade zootécnica e, sobretudo, comercial, essa área poderia ser reduzida pela metade. Trezentas matrizes representam o rebanho mínimo estimado de matrizes a partir do qual seria possível viabilizar a reprodução e a acumulação dos meios de produção de uma família. Os dados oficiais de estrutura fundiária do Nordeste, contudo, mostram que cerca de três quartos dos estabelecimentos nessas áreas possuem áreas inferiores a 50 hectares (de baixo potencial agrícola), embora não ocupem mais de um terço da área total. Apenas 2% deles possuem áreas acima de 500 hectares. Em situações como essa torna-se difícil, senão impossível, conciliar atividade econômica com preservação ambiental.

 

Maior valorização dos “fundos-de-pasto” (áreas de caatinga nativa, de uso comum, não reconhecidas pelo sistema de crédito), condomínios rurais e “irrigação mínima” são algumas das formas que poderiam ser utilizadas para atenuar ou neutralizar o problema a limitada superfície agrícola útil, na impossibilidade real de efetivar os ajustes fundiários em alguns espaços.

 

FORTALECIMENTO DAS ESTRUTURAS LOCAIS DE PRODUÇÃO

 

            Compreende dois tipos de ação, complementares, a serem desenvolvidas simultaneamente, a partir de espaços agrários ("territórios"), buscando, em cada um deles, estabelecer um dispositivo capaz de exteriorizar seus recursos específicos e sua capacidade de associá-los aos recursos externos necessários. Essas ações são voltadas, basicamente, para a mudança do padrão tecnológico dos sistemas produtivos e para a busca de uma maior inserção no mercado dos seus produtos.

 

Mudança do padrão tecnológico

 

            A consolidação dos processos de recuperação e de monitoramento dos recursos naturais e de reordenamento e ajustes dos espaços agroeconômicos é a base para a indispensável mudança do padrão tecnológico e um maior acesso aos mercados. As principais ações iniciais para o sucesso dessa etapa incluem obrigatoriamente a restruturação e fortalecimento da rede regional de assistência técnica e extensão rural (ATER) e formação de redes locais de apoio. Não se muda padrão tecnológico dos processos produtivos sem o apoio de uma rede de apoio técnico devidamente qualificada e estreitamente relacionada com as comunidades ou organizações de produtores.

 

A atual rede pública de ATER na região está distante de atender esse requisito, pela sua absoluta insuficiência quantitativa e qualitativa. Apenas no sertão da Bahia, à título de exemplo, onde se localiza o maior rebanho caprino e ovino do Nordeste, a estimativa é de apenas um técnico, nem sempre especializado no tema, para cada 250 mil cabeças. A estruturação de redes locais de apoio técnico, com base em ADRs (agentes de desenvolvimento rural recrutados e treinados nas próprias comunidades), respaldados tecnicamente por grupos regionais menores, de especialistas (agrônomos, veterinários, zootecnistas) nos principais produtos, seria uma estratégia recomendada.

 

Já existem na região algumas experiências dentro desse enfoque. O aproveitamento das redes municipais de escolas rurais, com a sua capilaridade e com seu corpo docente devidamente qualificado, pode ser a estratégia mais apropriada (e decisiva) de apoio à formação e operação das redes locais de apoio técnico. Cada uma dessas escolas pode se transformar em uma verdadeira “agência local de desenvolvimento rural e de preservação da biodiversidade”.

 

            Outro ponto que se faz necessário é o fortalecimento do sistema de pesquisa regional através do redirecionamento/ajuste no seu enfoque, da maior integração interinstitucional e da expansão e simplificação na obtenção dos seus recursos. Uma maior agilização nos ajustes do sistema de pesquisa regional no tocante aos aspectos já bastante debatidos como a visão do desenvolvimento territorial (priorizando os sistemas agroalimentares localizados), o emprego do enfoque de P&D, a diversificação dos sistemas e a interação com outras atividades, a incorporação do saber do produtor no processo de geração, a priorização da pesquisa ao nível de meio real e um maior enfoque da pesquisa nas questões “pós-porteira”, constitui uma exigência de importância crucial para fundamentar o processo de convivência com a seca. Esse redirecionamento exige, por seu turno, ajustes gradativos no perfil das equipes de pesquisadores, o que pode ser parcialmente equacionado, a curto e médio prazos, com uma maior articulação entre as diversas instituições de pesquisa na região, numa ação de complementaridade. Nessa ação cooperativa, deve ser contemplada, como prioridade um, a formação e a fixação, em espaços agroeconômicos estratégicos, de competências em temas técnico-científicos associados à problemática do Semi-Árido.

 

            Com a estruturação de uma rede técnico-científica mais qualificada e espacialmente bem distribuída e considerando as demais necessidades identificadas nos estudos das respectivas cadeias produtivas, estaria montada a base para as ações de validação e de transferência de tecnologias e conhecimentos disponíveis. O acervo de tecnologias e conhecimentos gerados pela pesquisa para as condições do Semi-Árido é muito vasto e necessita, o quanto antes, que parte dele seja levada para uso imediato do produtor. A outra parte deve ser, também, levada imediatamente ao campo, porém de uma maneira seletiva, para fins de validação e ajustes às condições locais. Embora alguns sistemas tecnológicos possam ser considerados já validados para algumas situações ou espaços, persiste a necessidade de associá-los ou combiná-los a outros sistemas com os quais possam se complementar e interagir, dentro do enfoque de sistemas agroflorestais (SAFs).

 

Quanto maior a diversificação dos sistemas, mais fácil será a preservação dos recursos físicos e bióticos do ecossistema. Alguns sistemas associados já estão sendo postos em prática e avaliados, entre os quais: o sistema caatinga-buffel-leguminosa, que combina caprinos, bovinos e o uso da caatinga, em Pernambuco; o sistema sisal-caprinos, na Bahia; o sistema apicultura-caju, no Piauí; o sistema Glória, com bovinos de leite e lavouras de ciclo curto, em Sergipe e o sistema agrosilvipastoril, de base caprino-lavoura de ciclo curto-extrativismo, no Ceará.

 

Existe, ainda, uma série de experiências promissoras que estão sendo conduzidas, em alguns municípios, por produtores, apoiados por organizações-não-governamentais ou, mesmo, de forma individual, sem qualquer forma de apoio. Essas experiências, algumas delas referências em princípios de agroecologia, precisam ser identificadas e fortalecidas através do apoio das instituições de pesquisa e de crédito. Esta estratégia de maior articulação dos órgãos de pesquisa e extensão rural com as organizações-não-governamentais e associações de produtores é fundamental para uma efetiva incorporação do saber do produtor ao processo de geração de tecnologia e uma apropriação mais acelerada dos resultados da pesquisa pelos produtores.

  

Limitando-se a produtos com maior potencial de mercado e mais adaptáveis às condições de sequeiro do Semi-Árido, apenas no sistema Embrapa, envolvendo as empresas estaduais de pesquisa, foram desenvolvidos, ou se encontram em fase adiantada de desenvolvimento, os seguintes sistemas agropecuários:

 

  • Cultivos de algodão arbóreo e herbáceo, gergelim, mamona, mandioca, feijão caupi, sorgo, sisal, caju, guandu, umbuzeiro, espécies florestais nativas e exóticas;
  • Criação de caprinos de corte e de leite, de ovinos de corte, de bovinos de leite e mistos;
  • Criação de abelhas;
  • Criação de aves caipiras,
  • Piscicultura de águas interiores

 

Na operacionalização e implantação desses sistemas, além dos seus componentes tecnológicos naturais, outras práticas, métodos e conhecimentos de uso sustentado dos recursos do Semi-Árido, gerados pela pesquisa, são também empregados, possibilitando maximizar a eficiência bioeconômica dos sistemas, através da redução de seus custos financeiros e ambientais. São fundamentos básicos para um exercício efetivo de convivência com a seca que devem ser incorporados a alguns desses sistemas, independentemente dos produtos explorados. O aspecto primordial para uma maior harmonia com o ambiente, característico desses sistemas, é a busca da diversificação, privilegiando-se a associação de diferentes cultivos e criações, dentro de um enfoque de agroecologia.

 

Nas criações de animais são consideradas, entre outras, as práticas de uso mínimo de insumos externos, de pastejo associativo de diferentes espécies na caatinga, de uso da rotatividade, da estacionalidade e da flexibilidade de lotação no pastejo e de uso de áreas de pastejo suplementar e de forragem conservada para aliviar a pressão sobre a caatinga nos períodos críticos de escassez de forragem.

Nos cultivos agrícolas são consideradas, entre outras, as práticas de preservação máxima dos elementos típicos da paisagem, integrando árvores e arbustos, da consorciação e da rotação de culturas, de uso de variedades geneticamente tolerantes à seca e resistentes às pragas e doenças, de controle biológico e integrado de pragas, minimizando o emprego de insumos externos, do uso da matéria orgânica e da proteção da cobertura do solo, incluindo uso mínimo da mecanização.

 

Outras tecnologias e procedimentos são incorporadas ao uso desses sistemas, destacando-se entre elas as técnicas de captação, armazenamento e uso racional de águas de chuva e subterrânea para consumo humano e animal e vegetal, as práticas extrativistas de uso sustentado da caatinga (madeira, energia, mel, frutas), os métodos de aproveitamento e de agregação de valor aos produtos vegetais e animais típicos do Semi-Árido, os métodos de zoneamento municipal e de tipificação de sistemas de produção e os modelos de organização de produtores.

 

            Ao lado de um programa de validação e transferência de tecnologia, a pesquisa deve, também, concentrar esforços na busca de novas alternativas econômicas em termos de uso sustentado dos recursos do bioma caatinga, considerando seus ecossistemas, espécies e genes. Existe um imenso potencial, quase que totalmente desconhecido, de alternativas econômicas, não convencionais, para uso desses recursos. Considerando o pouco que se conhece de alguns estudos preliminares de bioprospecção, pode-se afirmar que o caminho é promissor e que um esforço para identificar e dimensionar este potencial deve ser considerado como prioridade.

 

            No que tange a vegetais, o potencial existente na caatinga se direciona para plantas de valor alimentício (frutas, raízes), madeireiro, energético, medicinal, melífero, praguicida, ornamental, artesanal e de usos industriais, como óleos essenciais e taninos, entre outros. No aspecto da fauna silvestre, devem ser consideradas as espécies com potencial para uso zootécnico (cotia, ema, mocó, porco do mato e tatu, entre outros) e, em alguns espaços, de lazer/recreação (ecoturismo, caça controlada). A busca de inimigos naturais de pragas das lavouras e das pastagens (principalmente entre insetos) e de espécies provedoras de substâncias de uso medicinal e industrial (soros contra venenos, enzimas, etc.) constitui outra importante alternativa. Entre os micro-organismos, a identificação de bactérias, fungos e líquens com propriedades de antagonismo natural às pragas, bioinseticidas, biolixiviadoras, antibióticas ou indutoras do desenvolvimento da plantas, constitui uma linha de ação bastante promissora, mas que se acha ainda em um nível muito incipiente. O mesmo pode-se afirmar com relação ao estudo dos genes indutores de tolerância a estresses hídrico, à estresse salino, à acidez do solo e à resistência a doenças.

 

            A efetivação de formas de aproveitamento de alguns dessas alternativas pode proporcionar, sem dúvidas, um reforço decisivo na fundamentação de métodos mais eficientes de convivência com a seca. Impõe-se uma política específica de apoio, especialmente à universidade, para fortalecer os esforços nesse caminho.

 

Inserção no mercado

 

            A incorporação de inovações tecnológicas aos sistemas de produção resultará em um impacto bastante limitado se o produtor, simultaneamente, não adotar técnicas gerenciais e organizativas que lhe permitam reduzir seus custos unitários de produção e elevar o valor de venda de seus produtos. Para isso, as interações da sua unidade produtiva com o meio externo devem ser privilegiadas, já que constituem o caminho para a plena ocupação dos espaços de valorização e competitividade dos seus produtos.

 

Dentre as ações principais que permitirão uma maior inserção do produtor no mercado desponta a organização profissional do produtor e dos demais atores da cadeia. É por demais débil o nível de organização dos produtores na região semi-árida. Torna-se essencial para as economias locais a existência de entidades associativas relativamente bem estruturadas, com serviços próprios (compras conjuntas de insumos e de bens que não se justifiquem individualmente, beneficiamento e incorporação de valor agregado à produção, comercialização conjunta de produtos) que permitam a redução gradual da dependência externa de suas unidades produtivas, a redução da cadeia de intermediação e a elevação de seu poder de barganha no mercado. Para isso, são demandadas, entre outras ações, a implantação de uma política regional de estímulos à criação de associações e cooperativas e a implementação de ações de articulação e parceria com os demais segmentos das cadeias produtivas.

 

Estreitamente vinculada à organização, a capacitação tecnológica e gerencial do produtor e dos demais segmentos da cadeia é outra ação fortemente demandada. A capacitação deve servir de instrumento de mudanças de atitudes e valores, induzindo ou fortalecendo no produtor a auto-confiança e buscando elevar o nível de suas aspirações, estimulando-o, principalmente, a assumir maiores responsabilidades. Não deve se limitar meramente ao ensino massivo de técnicas de produção, como tem sido até agora a tônica. É fundamental que seja incorporado e privilegiado o ensino de técnicas de gestão da unidade produtiva, habilitando-o a distribuir mais eficientemente os seus escassos recursos de capital e trabalho no tempo e no espaço.

 

            Dentro dessa concepção, faz-se necessário um redirecionamento drástico em todo o atual processo de capacitação dos produtores rurais do Semi-Árido, considerado de baixa eficácia. O ponto básico que permitirá esse redirecionamento é a formação de instrutores realmente conscientizados e habilitados para atuar nos enfoques acima mencionados. Essa formação poderia se dar através de uma rede de unidades de formação em convivência com a seca, a ser efetivada com a criação de núcleos de formação em convivência com a seca, estrategicamente distribuídos nos principais espaços do Semi-Árido, apoiados por uma rede de unidades de referência no tema, com a missão, entre outras, de capacitar produtores e multiplicadores em técnicas de convivência com a seca e de apoiar, em parceria com as universidades, a formação e a fixação de competências técnico-científicas em temas específicos do Semi-Árido (condução de teses de mestrado e doutorado, cursos de curta duração, estágios curriculares, etc.).

 

O estabelecimento de um sistema de crédito adequado às circunstâncias sob as quais operam os sistemas produtivos constitui, para a maioria dos produtores, a principal medida que permitirá a mudança no padrão tecnológico e a sua efetiva inserção nos mercados regional e nacional. O sistema de crédito para o produtor da região, especialmente aquele que vive exclusivamente da atividade agropecuária, tem sido relativamente escasso, excessivamente burocratizado e inadequado às circunstâncias dos produtores. Ele precisa ser ampliado e transformado em instrumento efetivo de estímulo à eficiência técnica e gerencial da atividade. Entre outras medidas a serem estudadas para sua melhor adequação devem ser consideradas:

 

  • Uma maior compatibilização dos juros e prazos com o processo biológico-produtivo das espécies (animais e vegetais) em um ambiente de semi-aridez, com seus períodos cíclicos de estiagem prolongada (o crédito não deve considerar a seca como uma anormalidade);
  • A instituição de um sistema alternativo de crédito emergencial para a pecuária, automaticamente disponibilizado em períodos de severa estiagem, direcionado à aquisição de forragens e rações para sobrevivência das matrizes, permitindo ao produtor a manutenção de um capital mínimo que lhe permita reiniciar a atividade, passado o período crítico;
  • A inclusão de garantias evolutivas e a eliminação da exigência de recursos próprios para investimentos, da cobrança de taxas diversas e do excesso de garantias exigido.  

 

Por fim e paralelamente, são necessárias, também, as ações de valorização e promoção dos produtos ofertados ao mercado. Para isso, as organizações de produtores, articuladas com os segmentos transformador e distribuidor, devem promover ações voltadas para um maior conhecimento e o fortalecimento das cadeias produtivas em que se inserem, de modo a proporcionar-lhes uma visão mais objetiva do contexto sócio-econômico em que vivem, dos espaços de competitividade de seus produtos e das estratégias necessárias à sua valorização. A valorização dos produtos locais, enfatizando suas características diferenciadas e conferindo-lhes uma forte identidade territorial e/ou cultural, constitui o contraponto à globalização e nela pode residir o grande potencial para dar-lhes a necessária competitividade. Pela sua diversidade ambiental e riqueza cultural, a agropecuária do semi-árido oferece um espaço promissor para um trabalho com esse enfoque.

 

As ações poderiam ser combinadas em um programa específico de apoio tecnológico e financeiro à “agroindústria de pequeno porte”, privilegiando, entre outras, as seguintes ações:

 

  • Sistematização de ações voltadas para a melhoria da qualidade e a redução de perdas durante os processos de colheita, armazenamento, transporte, transformação e comercialização dos produtos da agropecuária do Semi-Árido;
  • Utilização de práticas voltadas para a incorporação de valor agregado aos diversos produtos e subprodutos da agropecuária regional, através de seleção, classificação, acondicionamento, processamento e certificações de origem e qualidade, ao nível de unidade produtiva ou organização;
  • Ajustes nos instrumentos e normas reguladoras da questão sanitária (serviços federal, estaduais e municipais de inspeção), visando simplificá-los e adequá-los a realidade dos arranjos produtivos predominantes na região;
  • Apoio à comercialização através de parcerias nas ações de promoção dos produtos e de estruturação de uma rede de pontos de comercialização;
  • Identificação de novas oportunidades de mercado para os produtos regionais e de estratégias e canais alternativos de comercialização que permitam a redução da cadeia de intermediação e a valorização desses produtos. Nesse particular, as compras institucionais (merenda escolar, hospitais, quartéis, creches, programas de distribuição de leite, etc.) São excelentes opções para início do processo, embora não seja recomendável uma excessiva dependência das mesmas.

 

Às etapas acima devem, ainda, ser acrescentadas ações de fortalecimento da infraestrutura complementar de apoio. São ações voltadas para assegurar os instrumentos básicos de apoio às atividades produtivas, compreendendo, entre outras, a melhorias do sistema viário, a expansão da rede de energia elétrica e de telefonia rural e a qualificação e adequação curricular das redes estaduais e municipais de escolas rurais para a formação de jovens, dentro de um enfoque que considere a realidade do ambiente semi-árido.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS                    

 

As etapas acima discutidas devem ser analisadas em seu conjunto, não isoladamente. A sinergia entre elas é que permitirá atingir os objetivos maiores de um programa de convivência com a seca: a preservação dos recursos naturais da caatinga (solo, água, flora e fauna) e o bem estar das populações que nela vivem e deles dependem.

 

As ações sugeridas devem, ainda, incorporar o controle social, exercido através de uma efetiva participação das organizações de produtores, das organizações não-governamentais e dos demais segmentos, pretensamente beneficiários das mesmas, nos conselhos, comitês e demais instâncias que forem estabelecidas.

 

Como se vê, o caminho é longo e complexo. Os recursos financeiros demandados devem ser significativos, mas perfeitamente captáveis. Há, ainda, fortes implicações no seu componente político, já que não deixa vislumbrar muitos resultados a curto prazo. Este caminho não é, contudo, impossível de ser percorrido.

 

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