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O primaz da insustentabilidade, artigo de José Eli da Veiga

Publicado: Quinta, 06 de Junho de 2019, 09h56 | Última atualização em Quinta, 06 de Junho de 2019, 09h56 | Acessos: 359

Agosto de 2005

 

Para que a expressão "desenvolvimento sustentável" deixe de ser mero conto de fadas, será necessário que as sociedades contemporâneas assumam uma agenda ambiental com doze graves desafios. Quatro decorrem de destruições ou perdas de recursos naturais: habitat, fontes proteicas, biodiversidade e solos. Três batem em limites naturais: energia, água doce e capacidade fotossintética. Outros três resultam de artifícios nocivos: químicos tóxicos, espécies alienígenas e gases de efeito estufa ou danosos à camada de ozônio. E os dois últimos concernem às próprias populações humanas: seu crescimento e suas aspirações de consumo.


Ao tomar conhecimento dessa dúzia de problemas, qualquer jovem já introduzido ao pessimismo da razão certamente perguntará: como nenhum dos doze está sendo seriamente enfrentado, qual deles é o melhor candidato a provocar algum drástico colapso? E embaraçará seus interlocutores, pois é tão forte a simbiose entre eles que não há como hierarquizá-los. Contudo, parece se formar amplo consenso de que água limpa pode ser o elo mais fraco dessa cadeia, e que será sua falta a causar os mais próximos ecocídios. Ela já causa conflitos internacionais em 20 das 214 bacias compartilhadas por dois ou mais países. Por exemplo, ao longo do rio Jordão, entre Líbano, Síria, Israel e Jordânia. Ou do Nilo, entre o Egito e vizinhos, como o Sudão. Semelhantes são as tensões no Sudeste Asiático, particularmente nas bacias himalaicas, disputadas pela Índia, Paquistão, Bengladesh; e, por último, mas não menos importante: a China.

Essas crises só poderão se agravar e se multiplicar, pois a demanda per capita de água doce sobe duas vezes mais depressa que a população. Já aumentou quase seis vezes desde 1900, enquanto triplicava a pressão demográfica. Assim, a disponibilidade per capita caiu nos últimos 35 anos de 12,9 para 7 mil metros cúbicos. E a previsão é de que em 2025 se aproxime de apenas 5 mil metros cúbicos, colocando 3 bilhões de pessoas em situação de grave estresse hídrico, segundo o Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

É por isso que já se considera a desigualdade de acesso à água potável como a manifestação mais chocante da chamada "fratura Norte-Sul". Para necessidades básicas - como beber, cozinhar, ou cuidar da higiene - a falta de acesso, com graves conseqüências para a saúde pública, atinge hoje um bilhão de habitantes dos países periféricos, e no máximo 50 milhões nos centrais. Enquanto o consumo anual de um americano é de 2 mil metros cúbicos, o de um europeu é metade, de um jordaniano um décimo e de um haitiano irrisórios e incríveis 7 metros cúbicos. Em grande parte porque as atividades mais responsáveis por excessos de consumo de água são os sistemas produtivos agrícolas que dependem de alguma forma de irrigação. Em alguns países asiáticos e africanos, a participação do setor agrícola nesse consumo chega a patamares de 80% a 90%. E nos próximos dez anos tais demandas serão reforçadas pelo setor industrial, cujas necessidades globais simplesmente dobrarão.

A falta de acesso à água potável atinge hoje um bilhão de habitantes na periferia do planeta e no máximo 50 milhões nos países centrais

 

O pior, todavia, é que essas fortes pressões sobre as reservas de água doce se combinam com grave deterioração qualitativa. Nos países do Sul, mais de 90% das águas usadas pelas redes urbanas, ou pelas vilas e burgos rurais, voltam sem tratamento para rios, lagos e mares. Nos Estados Unidos, cerca de 50 milhões de pessoas bebem água de torneira contaminada por chumbo, coliformes fecais e outros poluentes perigosos, já que 16 mil quilômetros dos rios do Oeste foram contaminados por produtos tóxicos e ácidos provenientes de indústrias, principalmente minerais. Na Europa, os esforços de despoluição do Reno coletam todo ano 4 mil toneladas de metais pesados e 7 mil toneladas de carburantes. Em várias outras regiões o sistema fluvial foi seriamente poluído por fortes concentrações de suinocultores. E na Rússia, três quartos dos lagos e rios têm água imprópria ao consumo devido à precariedade do tratamento.

No entanto, já faz 30 anos que entraram com força na agenda das relações internacionais esses e outros problemas relacionados com o acesso à água em quantidade suficiente e de qualidade adequada, assim como os riscos associados às faltas crescentes e à degradação do abastecimento. A primeira conferência mundial significativa sobre o tema foi organizada em 1977, em Mar del Plata, pelas Nações Unidas. E somente durante a década de 1990 foram lançados cinco importantes documentos internacionais: a Carta de Montreal e as declarações de Dublin, Estrasburgo, Paris e Haia. Em 1996, também foi criado o Conselho Mundial da Água (WWC), seguido do lançamento da Parceria Global da Água (GWP). E, com a ajuda da ONU, do Banco Mundial e de governos nacionais (especialmente da Holanda), o WWC criou, em 1999, a Comissão Mundial da Água no Século XXI.

Se por um lado foi pífio o avanço real em termos de soluções efetivas, por outro não resta dúvida que tantas iniciativas internacionais ajudaram a escancarar a contradição que causa tanta derrapagem. É a que opõe um vasto conjunto de agentes para o qual a água deveria se tornar uma mercadoria como qualquer outra, ao também amplíssimo leque de movimentos que a considera patrimônio global comum vital. Enquanto os primeiros se empenham em disseminar privatizações, os demais propõem um "Contrato Mundial da Água", fundado em dois objetivos centrais. Primeiro, o acesso básico para todos (um direito inalienável, ao mesmo tempo individual e coletivo). Segundo, o gerenciamento integrado, de acordo com princípios de solidariedade (dever da responsabilidade individual e coletiva pelas demais comunidades humanas, pela população mundial, pelas gerações futuras e pela Terra). Daí por que não poderia ter sido mais justa e oportuna a escolha da "questão da água" como tema da primeira conferência internacional do ciclo sobre "Governança e Sustentabilidade Ambiental" que o Senac São Paulo realizará em seu campus Santo Amaro, a partir do próximo dia 29.

 

José Eli da Veiga, professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP e autor do livro "Desenvolvimento Sustentável - o Desafio do Século XXI" (Ed. Garamond, 2005), escreve mensalmente às terças e, excepcionalmente, nesta quarta. Página web:
www.econ.fea.usp.br/zeeli/ 

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