Ir direto para menu de acessibilidade.
Página inicial > Educação Contextualizada > A CORRUPÇÃO E NÓS, artigo de Apolo Heringer Lisboa
Início do conteúdo da página

A CORRUPÇÃO E NÓS, artigo de Apolo Heringer Lisboa

Publicado: Sexta, 21 de Junho de 2019, 08h29 | Última atualização em Sexta, 21 de Junho de 2019, 08h29 | Acessos: 401

 

20/09/2006

I

 

O humorista Millôr Fernandes satirizava o movimento Rearmamento Moral de 1964, proposto pelo golpe militar e por um movimento de mulheres, dizendo: as armas nós sabemos onde elas estão, mas quem entra com a moral!

 

Referia-se ao moralismo da UDN e dos militares, que soava falso. A repulsa ao trabalhismo, às reformas e ao socialismo, gerava um discurso liberal rancoroso, de conteúdo direitista, mostrando que os interesses reais de implantação da ditadura eram camuflados no brilho do verniz ideológico liberal.

Aprendemos que é necessário integrar e compartilhar a justiça social, a democracia e o respeito aos princípios republicanos da administração pública, estabelecidos na Constituição Federal, artigo 37, que são a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Diversas gerações têm se empenhado nesta trilha. No entanto, liberdade, democracia e justiça social não podem ter como base política a mentira e a corrupção. São valores excludentes.

 

Precaução nunca é demais com a moralidade exibida, a ostensiva vocalização na forma de denunciar, atitudes que notabilizaram os fariseus no Judaísmo. Estamos vendo na televisão notórios corruptos falando em moralidade, das tribunas das CPIs. Não devemos acreditar neste estilo. A discrição, a efetividade, a simplicidade, o exemplo, a perseverança e a esperança de que este mundo pode mudar para melhor devem nortear nossas propostas, ações e, sobretudo, nossa metodologia. Gandhi nos dá muitas lições ao falar do exemplo, da prática coerente com o discurso.

 

As práticas indevidas, na esfera pública quanto privada, precisam ser erradicadas de nossa cultura. Ou seja, não compactuar com a corrupção, não ser conivente com ela nem cúmplices de suas maracutaias. Mas procurar caminhos que possam levar a sociedade a se transformar, com firmeza, amor e a força do exemplo. Temos que ser criativos. A lei e a repressão não vão mudar o mundo, mas a transformação da consciência e da cultura.

As iniciativas destemidas, individuais ou de pequenos grupos, com potencial maior de riscos pessoais, têm acontecido, e gerado resultados importantes. Nossa admiração é grande pelo gesto destas pessoas, que furam bloqueios e geram fatos e mudanças, pela inteligência e coragem pessoais. Mas a mobilização social deve prevalecer, expressando o caráter coletivo da indignação, substituindo a fase heroica individual do início. É necessário se apoiar e trabalhar em parceria com as instituições governamentais voltadas para a fiscalização, investigação, intervenções judiciais e repressão aos casos de corrupção.

 

Vivemos num baseado nas relações capitalistas de produção, privada ou de Estado, onde o capital preside as relações sociais de trabalho e de consumo. Os países ditos comunistas são ou foram capitalistas de Estado, tentando fazer frente ao imperialismo do capital, pois o capital privado tem cobertura política e militar do Estado.

  

Uma das contradições desse sistema é que o essencial não está à venda no mercado. A sociedade não pode ser dirigida pelo dinheiro, mas por outros valores que são essenciais. A corrupção é enraizada internacionalmente, seguindo as rotas do comércio, da política, do capital financeiro-industrial. Lideranças políticas subalternas colaboram com as grandes negociatas internacionais feitas dentro das regras legais impostas pelos mais fortes. Uma ação eficiente de combate à corrupção deve buscar se organizar internacionalmente.

 

Os escândalos em torno da alta remuneração dos agentes públicos eleitos ou não, dos três poderes da República, são um desrespeito grave à democracia e às nossas condições sociais. Precisamos desencadear a mobilização pela formação de núcleos, com a metodologia da autonomia articulada. É questão de honra prosseguir nas ações políticas e jurídicas, propondo reformas na legislação, que aperfeiçoem nossas instituições. Uma vitória importante o Brasil obteve, embora parcial, quando foi aprovado em 2004 uma reforma da Constituição para que o teto salarial do presidente do STF fosse o maior salário pago em qualquer nível de Estado. Mas o teto foi muito elevado, e ainda assim, continuam as resistências à medida, burlando sistematicamente a decisão.

 

Recentemente, graças ao deputado federal Roberto Jefferson, da base de sustentação do governo Lula, tomamos conhecimento do que nos era ocultado. Não importa aqui suas motivações, sua vida pregressa, mas nisto ele foi melhor do que os que julgávamos do nosso lado e nos enganaram. Como no dito popular: quem não tem cachorro caça com gato. Suas denúncias desnudaram o atual sistema político-partidário do país.

 

Prosseguindo na metodologia de pensar macro e sistematicamente, combinando-a com ações locais e imediatas coerentes, eficientes, respeitadas e bem organizadas, podemos alavancar a mobilização social e conquistar nossos objetivos.

 

                                                         II

 

Minha visão mais geral é de que a corrupção pode ser controlada e submetida pela força da sociedade. E que devemos prosseguir na utopia de sua completa erradicação. Mas o que é mesmo a corrupção?

 

Segundo me relatou Leonardo Boff, corrupção é a “ruptura do coração”. Interpreto isto como desidentidade social, perda do amor pela humanidade. Na vida política e social é roubo, traição, estelionato. Já na história da medicina corrupção designava uma patologia no intestino reto e ânus em que os tecidos eram corrompidos por vermes e micróbios, apodrecendo, produzindo mau cheiro e horror. Em meio ambiente associamos corrupção com poluição.

 

Todas as pessoas, grupos e instituições, enfim o conjunto da sociedade, possuem valores morais e referenciais éticos. Não há vazio moral, ético nem ideológico. Os princípios da ética e da moral não são sinônimos do bem; há os do mal. Aqui vai uma pequena diferenciação entre moral, que são os costumes praticados e herdados, e a ética, que olha para frente, discute o que seria bom para o presente e o futuro, e pode discutir criticamente a moral reinante. Se em nome de conveniências adotamos os costumes e abandonamos os ideais éticos de nossas lutas políticas pela transformação, estamos reforçando os valores do passado, não importa se nosso discurso seja outro.

 

David Hume, filósofo inglês do século XVII, escreveu que a moral é utilitária. Segundo ele, a sociedade constrói sua moralidade atrelada aos seus interesses tangíveis e subjetivos predominantes. Em resumo: moral é o que é bom para nós! Nesta linha, Millôr Fernandes criticou a ditadura dizendo o seguinte: “restabeleça-se a moralidade ou nos locupletemos todos!”

 

A moral não seria um código utópico ou divino, quase inacessível, perseguido tenazmente por um grupo seleto de pessoas. De certa forma David Hume desmascarou o puritanismo moralista e conferiu à moral dimensão histórica concreta. É fácil verificar isto no macro e no nosso cotidiano, vejamos alguns exemplos. Na política colonial inglesa na China e na Índia os puritanos e vitorianos fomentaram o uso do ópio para enfraquecer a resistência à ocupação e proibiram o uso do tear para obrigar os indianos a comprarem tecido inglês, enquanto aqui no Brasil só apoiaram a abolição visando ampliar os mercados para seus produtos. Nos EEUU a escravidão dos africanos foi aceita ao lado dos preceitos evangélicos puritanos, pois precisavam de mão-de-obra barata. No Brasil colônia os negros importados da África aqui chegavam batizados a ferro quente e a escravidão era justificada mediante exuberante teologia. Nos países comunistas a greve sempre foi vista como insurreição contra-revolucionária e a liberdade de expressão reprimida. Mas antes os comunistas defendiam estes mesmos direitos de forma radical. E assim por diante. Não há os éticos, e os antiéticos, enquanto produtos acabados, estratificados, incomunicáveis e sem possibilidade de interconversões. Eles se produzem e se reproduzem num fluxo incessante em razão de princípios culturais, de atitudes políticas, de conveniências e, sobretudo, de interesses econômico-financeiros.

 

As pessoas do povo e o senso comum da sociedade condenam o nepotismo, o emprego público sem concurso, o desperdício e o roubo do dinheiro administrado pelos governos. Mas são complacentes com estas práticas e as justificam quando em benefício próprio, de familiares, de amigos e de suas corporações profissionais. Não as denunciam, usufruem os benefícios. Nas regiões onde a maconha é produzida e rende dividendos para o comércio local, ou nas regiões onde o tráfico de drogas e armas traz recursos para a comunidade, cria-se uma difusa e sutil cumplicidade com as práticas criminosas. A polícia tolera crimes de seus colegas praticados contra a população; outros profissionais fazem o mesmo nos diversos ramos de suas atividades sociais, cobertos ideologicamente por argumentos corporativistas. Os partidos procuram acobertar seus crimes e deitam falação contra os adversários em se tratando dos mesmos comportamentos. Enfim, não dá para confiar num sistema desta qualidade de pessoas e atitudes tão incoerentes. Em síntese: mais importante que nossa consciência, frequentemente complacente e aculturada, é desenvolvermos consciência crítica do processo de formação de nossa consciência.

 

É o sistema que precisa mudar e mudará se houver indivíduos e instituições com esta compreensão e determinação ao longo do tempo. Acredito que nossas ongs podem dar grande contribuição para esta meta. Não acredito que os partidos políticos possam liderar a sociedade nesta missão. Mas eles podem colaborar se grupos internos assumirem lá esta perspectiva. Ainda que ao risco de serem expulsos por infidelidade partidária. Mas é repugnante a utilização da bandeira da ética visando principalmente o marketing eleitoral.

 

Não deveria prevalecer em nossa ação uma visão moralista dos comportamentos sociais e das opções éticas, mas uma visão histórica do desenvolvimento da mentalidade, dos modos de produção e dos comportamentos. Na crise que permeia o sistema governamental e partidário do Brasil argumenta-se que os fins justificam os meios. Gandhi dizia que o mundo que queremos ver no futuro deveria ser aquele de nossa prática hoje, do nosso exemplo. Ernesto Guevara quis encarnar o homem novo, não como produto de um processo de médio e longo prazo, mas como prática imediata de um novo comportamento ético. Isto soava um pouco idealista para certa leitura do marxismo.

 

Aprendi, com um casal de jovens alemães exilados em Argel, que os meios são os fins. É balela o adiamento ad eternum de novas práticas enquanto pessoas, partidos e países. Não mais nos convence que os porta-vozes da esperança incrementem práticas perversas como guerras, corrupção, mentiras, estelionato eleitoral com a justificativa pragmática de que são os únicos meios para se alcançar os tão nobres fins. As nossas atitudes são construídas nos conflitos individuais, grupais, institucionais dos nossos cotidianos. Construímos incessantemente estruturas e comportamentos, desconstruindo e construindo nossa cultura.                                                                                                                                              

Há em cada pessoa, grupo, setor social e corporação princípios e comportamentos em luta interna, às vezes pouco aparente, não sendo homogênea a reação dos indivíduos frente às opções éticas. Às vezes, o silêncio se impõe temporariamente. Mas estas contradições, inerentes aos agrupamentos humanos, são a base que possibilita as nossas intervenções enquanto indivíduos e enquanto ongs, que se coloca como referência social no questionamento à corrupção e à poluição. Este questionamento integra uma grande variedade de motivações: religiosas, étnicas, culturais, regionais, econômicas, familiares, de classe, política e de geração.

 

A construção de uma densidade social pela ética, através da exigência de transparência enquanto nova cultura social, tanto na vida privada quanto na vida das instituições empresariais e governamentais, se impõe às nossas consciências. O caminho é o cultivo da transparência, do debate franco em busca da verdade, da distribuição democrática da renda e da propriedade socialmente produzidas, da não-violência, do respeito a todos. Isto poderá ser hegemônico em nossa sociedade, é um sonho que pode ser realizado, nós acreditamos nisto. Lutamos por isto, com foco no controle e na possibilidade de erradicação da corrupção na administração governamental brasileira e na vida privada, na medida em que isto seja uma exigência da nova mentalidade. Uma sociedade corrupta ou complacente jamais terá um governo diferente, que é seu reflexo. É evidente que a questão deve ser abordada de forma macro e sistêmica. Não podemos ter uma visão setorial e moralista da questão dos comportamentos morais e éticos. Devemos agir para mudar nossa mentalidade cultural. Neste sentido, torna-se imprescindível valorizar a educação formal e informal, as atividades artístico-culturais, as ações no plano político, a mobilização social e as ações de comunicação pela mídia. E dar exemplo.

 

Devemos nos articular em nível estadual, nacional e internacional, pois o sistema econômico ultrapassa todas as fronteiras. A nossa metodologia deve ser pensar globalmente e agir localmente, com focos temáticos e mesmo geográficos bem definidos em cada momento e a definição de indicadores de acompanhamento. 

 

Devemos criar e desenvolver nosso próprio estilo de combate à corrupção e de construção de uma convivência social e política melhor qualificada que a atual. A credibilidade de uma proposta política é inseparável da credibilidade de suas principais lideranças. A ética do exemplo de vida é insubstituível. Não há rolo de papel escrito que a substitua. E com forte mobilização social, que é fundamental.

 

Neste sentido, tenho proposto com o apoio significativo, o fim do monopólio partidário das candidaturas, do quociente eleitoral e da governança do país. O inciso V, parágrafo 3° do artigo 14 da Constituição Federal, impõe a filiação partidária como exigência de elegibilidade cassando os direitos políticos garantidos na própria Constituição, como nos incisos XVII e XX do artigo 5, que asseguram, enquanto direitos fundamentais, a liberdade de associação e o direito de associar-se ou não. Todo o artigo 14 poderia ser mantido, com exceção do inciso V que exige a filiação partidária, impondo, assim, o monopólio partidário. Este inciso entra em contradição com o que o antecede na Constituição Federal. Que se mantenham os partidos para quem quiser, mas que alforriem a sociedade desta escravidão que fere o artigo 5. Que se abra espaço de arejamento político para a sociedade tentar democraticamente novas formas de organização e ação. 

 

Em Juizes, está a narração da Fábula de Jotão. A sucessão política leva Abimeleque a tramar a morte dos seus 70 irmãos, filhos de Gideão, grande liderança em Israel. Jotão, o mais novo deles, foi o único sobrevivente da chacina familiar e reaparece mais tarde mobilizando o povo com a sua fábula. Dizia ele: “as plantas queriam um rei e foram procurar a oliveira, depois a parreira, depois a figueira, mas nenhuma delas aceitou, alegando ocupações prioritárias e interesses da vida privada. Então os espinheiros se ofereceram e mais que depressa assumiram o poder. Como é de comum acontecer com as macegas e os espinheiros, o fogo se acendeu facilmente e se espalhou, destruindo os espinheiros e os que se abrigavam nas suas sombras”.

 

O Projeto Manuelzão atua em Minas Gerais tendo como lema saúde, ambiente e cidadania. A corrupção é uma forma de poluição que desagrega o tecido social, prejudica a construção da cidadania plena e a defesa do meio ambiente. O ser humano e o meio ambiente têm sido tratados como meios.

 

Apolo Heringer Lisboa - Idealizador e Coordenador do Projeto Manuelzão

 Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Fim do conteúdo da página

Nós usamos cookies para melhorar sua experiência de navegação no portal. Ao utilizar o fundaj.gov.br, você concorda com a política de monitoramento de cookies. Para ter mais informações sobre como isso é feito, acesse Política de privacidade. Se você concorda, clique em ACEITO.