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A QUESTÃO DA ÁGUA NOS DIAS ATUAIS

Publicado: Quarta, 20 de Novembro de 2019, 17h06 | Última atualização em Quarta, 20 de Novembro de 2019, 17h06 | Acessos: 1984

Ivo Poletto

Roberto Malvezzi (Gogó)3

Artigo retirado da primeira edição de “Novos paradigmas para outro mundo possível”, Abong – Democracia, Direitos e Bens Comuns e Iser Assessoria, São Paulo, 2019 

A chamada crise da água é apenas uma dimensão da “crise civilizacional” que estamos atravessando. Como diz o Papa Francisco, não são duas crises, uma social e outra ecológica. Há uma crise, socioambiental, que se expressa de múltiplas formas e dimensões. A questão da água é uma delas, da maior gravidade, mas não é a única. 

Apesar de todos os sinais e advertências dessa crise, agora particularizando para a água, o Brasil continua em linha cega de destruição de seus mananciais. Aquele que ainda é considerado como um dos países com maior potencial de água doce do planeta tem enfrentado problemas sérios de abastecimento básico de sua própria população e vê avançar a existência de áreas desertificadas. 

Vamos abordar nesse texto uma série de questões que estão acabando com as nossas águas, começando pela mais grave, de pouco alcance na mídia, praticamente ignorada pelos agentes econômicos e políticos, que é a questão do nosso ciclo das águas. Para muitos cientistas, ele está sendo alterado pela atividade econômica do Brasil. Nós precisamos entender o que se passa, colaborar para que mais grupos sociais e pessoas se inteirem da problemática e fazer as tarefas e atividades que nos cabem nesse momento da história.  

Em nosso ciclo das águas, a Amazônia vem primeiro 

Neste raciocínio está embutido o papel fundamental de dois biomas brasileiros no que toca ao ciclo de nossas águas, isto é, Amazônia e Cerrado. A questão amazônica é explicitada pelo Prof. Antônio Nobre no vídeo que está citado como fonte e referência. O Cerrado, pelo Prof. Altair Sales. A conexão entre ambos será feita por nós. 

Em tempos mais recentes a climatologia brasileira descobriu funções fundamentais da floresta amazônica antes não devidamente percebidas. Vamos aos fatos. 

Sabemos que a formação de nuvens – água em forma de vapor – se dá principalmente na linha do Equador. Ali, a incidência do sol intensifica a evaporação dos oceanos. Os ventos, então, seguindo uma lógica básica, empurram esses vapores de água para o Norte e para o Sul. Quando vêm para o Sul, acontece um fenômeno até então inexplicável. A tendência das nuvens, pela precipitação das chuvas, era que essa massa de água em forma de vapor perdesse força à medida que se afasta da linha do Equador e adentra o continente. Porém, quando chega sobre a Amazônia, ela volta a ganhar força. É o que o hoje se chama popularmente de rios aéreos da Amazônia. Os ventos, então, continuam empurrando essas massas de água para o sul. A constatação é que as chuvas que caem em Buenos Aires, têm origem na Amazônia. Senão, as águas vindas do oceano já teriam perdido força e o quadrilátero São Paulo a Campo Grande, Buenos Aires a Assunção, seria simplesmente um deserto, assim como é nessa latitude em outras áreas do mundo.  

Novos Paradigmas Para Outro Mundo Possível 

O que a Amazônia faz, então, com as águas que passam sobre ela? Dois fatores fundamentais: primeiro, a evapotranspiração das árvores injeta mais água na atmosfera, chegando até a mil litros diários por árvore, o que gera um rio aéreo maior que o rio de superfície, o Amazonas. Segundo, ao transpirar, os vapores da floresta levam ao ar aerossóis que ajudam a condensar o vapor de água, proporcionando sua precipitação. 

Resumindo o raciocínio, se não fosse a floresta amazônica, as águas oceânicas não chegariam até onde chegam e toda região sul do continente seria um imenso deserto, onde está 70% do Produto Interno Bruto da América Latina. 

Portanto, a preservação da floresta amazônica em pé é fundamental não só para os brasileiros, mas também para outros países do continente. Daí a conclusão simples de que a destruição dessa floresta compromete o futuro não só dos amazônidas, não só dos brasileiros, mas também de argentinos, uruguaios e paraguaios. Ainda mais, não compromete somente a vida humana, mas todas as formas de vida que dependem dessa água. Como afirma o Prof. Antônio Donato Nobre, se os políticos e economistas soubessem o que a ciência sabe – e por que não sabem? – esse país montaria uma economia de guerra para preservar a floresta amazônica.

O papel do Cerrado nesse ciclo das águas 

Acontece que a Amazônia gera água para a atmosfera e faz chover em grande parte do território latino-americano, mas, por ser uma região baixa, não tem capacidade de distribuir essa água pela superfície da Terra. Quem faz isso é o Cerrado. O Cerrado não gera água como a Amazônia, mas absorve a água que vem do bioma amazônico através de seus rios aéreos, armazena-a 

em seus aquíferos, sobretudo o Guarani, o Bambuí e o Urucuia, abastecendo a vasta malha de rios que pendem para todas as direções do território brasileiro, na direção da Amazônia, do Pantanal, da bacia do Paraná e até mesmo na direção da caatinga, pelas nascentes e afluentes que abastecem o rio São Francisco. 

O que permite ao Cerrado realizar essa cooperação – ele, o bioma mais antigo da face da Terra, com cerca de 65 milhões de anos – é seu solo poroso e as raízes profundas de suas árvores. É bom lembrar que o Cerrado é considerado uma floresta de cabeça para baixo, sendo que 70% de sua biomassa está dentro do solo e apenas 30% na superfície. 

É por essa razão que o Cerrado é chamado de “Caixa D’Água do Brasil”, “Cumieira das Águas”, assim por diante. As expressões populares, utilizadas até nos meios científicos, nos dão a imagem precisa de sua importância no armazenamento e distribuição das águas em nosso território, permitindo assim que tenhamos tantas bacias hidrográficas perenes, o que não seria possível sem esses aquíferos. 

Acontece que, por sua antiguidade, o Cerrado é um bioma que não tem capacidade de regeneração. Portanto, uma vez destruído, destruído para sempre. Esse é o desastre socioambiental promovido pelos sucessivos Programas de Desenvolvimento do Cerrado – PRODECER, originados do casamento entre a proposta da empresa público-privada japonesa JICA e a ditadura militar nos anos de 1970, e pelo agronegócio ao destruir o Cerrado e a Amazônia para produzir monoculturas como a da soja, ou para as pastagens extensivas de gado. Erradicar a flora, compactar os solos, é eliminar o Cerrado. Tanto é que pequenos rios e afluentes das grandes bacias, pelo rebaixamento dos aquíferos, estão sendo extintos aos milhares e a olho nu.  

O exemplo mais cabal é o rio São Francisco. Dependente das águas que brotam no Cerrado, o Velho Chico está morrendo junto com o bioma que o abastece. É óbvio, não há nenhum diálogo entre a elite político-econômica e a ciência do clima e o povo da região nesse sentido, embora as consequências sejam nefastas para as atuais e futuras gerações. 

Múltiplos usos e múltiplos valores da água 

O discurso capitalista da água é oriundo de um grupo de multinacionais que dominam o negócio da água em todo o planeta, a chamada Oligarquia Internacional da Água, cujo evento mais expressivo é sempre o Fórum Mundial da Água, acontecido no Brasil em 2018. 

Esse grupo deu uma nova narrativa à água, com conceitos como privatização, mercantilização, valor econômico da água, escassez da água, mercado de água, guerra pela água, ouro azul, assim por diante. 

Mas não ficou só no discurso. Estendeu essa conceitualização aos governos do mundo inteiro e a água passou a ser privatizada nos seus múltiplos usos, como os serviços de abastecimento de água, a água engarrafada, a venda de outorgas de água, criação do mercado de água, como é o caso brasileiro mais exemplar da Transposição de Águas do Rio São Francisco para o Nordeste Setentrional. Onde couber um negócio, o mercado de água se coloca. 

Anos atrás, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), observando esse fenômeno do capital, deu a essa iniciativa das empresas o nome de “hidro negócio”, isto é, o negócio da água. 

A assimilação radical desse paradigma gerou conflitos no mundo inteiro, levando a uma verdadeira guerra da água em Cochabamba, Bolívia, por exemplo, quando a população foi às ruas e exigiu a expulsão da empresa que se apossara do serviço de água da cidade. Os preços tinham se tornado absurdos, e a população já não conseguia sequer pagar o valor da tarifa de sua água doméstica. A luta foi vitoriosa, e hoje a água é bem comum e direito de todos os seres vivos na Bolívia, e deve ter sua gestão de forma pública. 

Nesse sentido, a sociedade civil mundial e Igrejas foram criando outra reflexão, a saber: a água, além de múltiplos usos, tem múltiplos valores, como biológico, social, ambiental, reli­gioso, paisagístico, de lazer etc. Portanto, água não pode ser privatizada e mercantilizada, mas tem que ser reconhecida como um bem comum, um patrimônio, um direito da humanidade e de todos os seres vivos. 

Vão nessa direção práticas de remunicipalização dos serviços de água e saneamento em todo o mundo. Em artigo publicado pela BBC4 em junho de 2017, a jornalista Júlia Dias Carneiro destaca dados de uma pesquisa internacional sobre esse tema, coordenada por Satoko Kishimoto, coordenadora de políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda. 

Revertendo a onda privatizadora iniciada em 1990 – e que ainda é implementada como política governamental no Brasil –, desde o ano 2000 são conhecidas 267 práticas de rees­tatização dos serviços de água e esgoto. E, em cidades significativas, como Berlim (Alemanha), Paris (França), Budapeste (Hungria), Bamako (Mali), Buenos Aires (Argentina), Maputo (Moçambique) e La Paz (Bolívia). São mais de 100 milhões de pessoas que voltaram a contar com serviços públicos. E é importante lembrar que mais de 90 por cento dos serviços de água e esgoto têm gestão pública. 

A desprivatização na cidade de Paris e o fato de que, das 267 iniciativas, 106 tenham acontecido na França, são eventos sim­bólicos. Afinal, a França foi o país que capitaneou a onda privati­zadora e, além disso, duas das maiores empresas transnacionais defensoras e praticantes da privatização, a Suez e a Veolia, têm suas sedes no país. 

De forma resumida, os motivos destacados pela pesquisa para essa reversão são esses: “Em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás porque constatam que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas inicialmente e operam com falta de transparência, entre uma série de problemas que vimos caso a caso”. 

De certa maneira, parece evidente que a entrega desses serviços públicos a empresas capitalistas não pode dar certo. Afinal, elas buscam lucros, e isso as leva a aumentar os preços, a não investir no atendimento da população sem condições de pagar. Aliás, como destacam outros pesquisadores, há um conflito mais profundo entre democratização e privatização: o sistema do lucro individual não convive com a participação política nas decisões que visam garantir os direitos universais de todas as pessoas. É isso que leva as elites econômicas a cuidarem para que o exercício do poder estatal esteja em suas mãos, mantendo sob controle a democracia. 

No Brasil, essa reflexão foi codificada no texto base da Campanha da Fraternidade de 2004. Ali toda essa reflexão está sistematizada e organizada. 

Na encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, esta reflexão foi incorporada pelo magistério universal da Igreja Católica.  

Viver num planeta Água 

Neste tempo em que se vive o agravamento da crise civilizacional socioambiental, um dos desafios a serem enfrentados é o antropocentrismo, isto é, a mania de ver tudo a partir do ser humano, das suas necessidades, interesses e desejos. Nem mesmo o passo de considerar os seres humanos e demais seres vivos como membros de uma comunidade de vida é suficiente para romper com essa visão. A Terra continua sendo apenas um lugar, um espaço em que estes seres vivem. Mas ela é muito mais do que isso. 

Introduzimos aqui um debate em aberto sobre os “direitos da Terra”. Teria ela direitos, ou seriam apenas uma maior responsabilidade dos seres humanos, os únicos sujeitos de direitos? Como veremos, os povos originários, de longa história, reconhecem que a Terra é fonte da vida, e ela tem direito sagrado de ter tudo que ela criou para gerar a vida. E no diálogo político entre estes povos, agora presentes em processos de construção de sociedades democráticas, e os cidadãos descendentes dos povos colonizadores e educados nas tradições da cultura ocidental, os direitos da natureza, da Pachamama, já foram reconhecidos na Constituição do Equador5 e da Bolívia6. O que sugerimos é que aprofundemos a temática da água na perspectiva dos direitos da Terra. 

Por mais que textos e tradições religiosas tenham destacado a relação com a Terra como ser vivo, como fonte de vida, o domínio da ciência ocidental, e sua instrumentalização pelo capitalismo, conseguiu contaminar quase todas as relações dos seres humanos com os ambientes naturais em que vivem, colocando como base de tudo a separação entre razão e natureza. Por ser racional, o ser humano – e na verdade, o homem, radicalizando a segregação da mulher – teria o direito de apropriar-se da natureza para utilizar seus recursos para produzir mercadorias, a serem negociadas nos mercados capitalistas, gerando um progresso sem fim. A Terra foi reduzida a um objeto útil para os negócios dos detentores de capital e, com isso, tudo passou a ser apenas recurso, inclusive o desenvolvimento científico e tecnológico, igualmente apropriado pelo capital. 

Importante não esquecer a existência até os dias de hoje de povos que se negaram a aceitar essa contaminação materialista. Nas Américas, por exemplo, mas também em outros continentes, povos originários enfrentaram decretos de extinção durante mais de 500 anos para manter seu direito de ser, de pensar, de sentir, de se organizar e celebrar suas relações com os membros de seus povos, com os demais seres vivos e com a Terra. Para eles, a Terra é um ser vivo, fonte de vida, mãe de todos os seres vivos, incluindo os humanos. Ela existe muito antes de cada ser vivo e de cada povo; ela é a fonte da vida de todos eles. Por isso, não é o ser humano o senhor da Terra; ela é que é senhora, e todos somos parte dela. Nessa perspectiva, em que estes povos de longa história existentes hoje desafiam a humanidade a assumir com criatividade sua forma de ser e conviver sintetizada no Bem Viver, a água, muito antes de ser bem comum, patrimônio e direito dos povos humanos e dos demais seres vivos, é fonte e condição indispensável da vida da própria Terra. 

A arte, antes da ciência, possibilitou que nos relacionássemos com o Planeta Água. Tudo está interligado entre os inumeráveis fatores que tornaram possível e mantém, durante milhões/ bilhões de anos e ainda hoje, a vida deste planeta, mas, desde a mais simples forma de vida, a água esteve presente de forma constitutiva. E foi ela que, nas relações com o sol e com o fogo e todas as suas manifestações, foi tornando possível que a Terra chegasse a ter um clima e umidade favoráveis a todas as formas de vida que conhecemos – e que a visão racionalista de progresso individual nos levou a desprezar e aniquilar quando não são mediações de aumento de riqueza e poder. 

Por isso, a água é, antes de tudo e de todos, um direito da Terra. Sem ela, a Terra deixa de ser viva e fonte de vida. É um direito originário, em relação ao qual ela pode cobrar dos que não o respeitam, poluindo, contaminando, agredindo e matando. A Terra tem direito a que a água seja respeitada e mantida no solo, no subsolo e na atmosfera, com as qualidades que ela gerou. Então, por exemplo, o descuido e a morte de nascentes, que banham os solos depois de correr pelos condutos dos aquíferos, antes de ser um crime contra os seres humanos e demais seres vivos, é um crime contra o direito da Mãe Terra. E a derrubada e queima das florestas e demais coberturas vegetais, geradas pela Terra no longo processo de sua vida para diversificar e manter ambientes geradores de vida, como já vimos em relação à Amazônia e ao Cerrado, é antes de tudo um crime contra a Mãe Terra. 

Por ser essencialmente a água a fonte de todas as formas de vida, nós mesmos, seres humanos, e todos os seres vivos das mais variadas espécies, somos mais água do que qualquer outro elemento. Somos 70 por cento, ou mais, água. E só conseguimos viver se, junto com o oxigênio, presente no ar que respiramos e na água que bebemos, estiver disponível e garantida a qualidade gerada pela Mãe Terra. 

Em outras palavras, nossa relação com a Terra precisa ter a qualidade da afinação e complementaridade dos instrumentos musicais de uma orquestra: ser harmônica. Sem isso, a Terra e todos os seres vivos, isto é, a comunidade global de seres vivos, de que é fonte originária, Mãe, caminharemos na direção da morte por sede. Ou cuidamos da água da Terra, ou não teremos como garantir os direitos para todos os seres vivos; na verdade, secaremos. 

Falando em secar, já estamos atrasados no enfrentamento dos processos de desertificação em nosso país. Tratam-se de processos em que práticas humanas se relacionam de forma inadequada, descuidada e predatória com as características do regime de águas de cada bioma. A retirada da cobertura vegetal é o começo desse processo, já que, sem as árvores de cada bioma, diminuem gravemente as capacidades de guardar água das chuvas no solo, de manter umidade, de proteger nascentes, de dialogar com as nuvens, favorecendo a condensação e as precipitações de água das chuvas. Quando a agricultura ou a pecuária deixa grandes áreas nuas ou mal protegidas ao sol, dá-se mais um passo rumo ao deserto. O processo se agrava quando, por longo tempo, se retira água do subsolo, se desperdiça seu uso, de modo especial com a irrigação de monocultivos. E ele é completado com as práticas que expulsam grande parte da população para as grandes cidades, em que a falta de políticas públicas de cuidado com o território gera contaminação e morte da vitalidade das águas. 

Dois biomas do Brasil precisam de cuidado especial: a Caatinga, por ter clima semiárido, e o Cerrado, por ser território altiplano muito antigo e por ter as características de solo e subsolo já referidas. Na Caatinga, uma área maior do que o Ceará já está desertificada, e a teimosia do agronegócio de manter e generalizar o sistema de produção de commodities faz com que o bioma Cerrado caminhe inexoravelmente na mesma direção. 

A existência de crescentes áreas desertificadas no Sul do país deveria ser um alerta de que a tensa relação entre períodos de seca mais longos, enchentes, vendavais, ondas de calor e de frio 46

– eventos extremos característicos das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global da Terra – e práticas de agricultura química e artificial das monoculturas do agronegócio, de reflorestamento industrial, de mineração predatória, de geração de energia com multiplicação de represamento das águas dos rios e do faturamento hidráulico do fracking, pode, sim, fazer com que o processo de desertificação se torne presente em todos os biomas e regiões do país. 

Depredação 

A maior depredação de nossas águas está na ruptura de seu ciclo, mas também nos corpos locais de água e até transfronteiriços. Esse fenômeno se coloca na depredação tanto da quantidade como da qualidade dos corpos d’água.

A destruição de mananciais como o rio São Francisco – um caso exemplar para todo o território nacional – se deu seja pelo desmatamento do território da bacia, pelo sobreuso da água na irrigação, pela alteração da dinâmica das águas pelas barragens; seja por todos os tipos de poluição que impactam diretamente a disponibilidade de água para as populações; seja na dificuldade do uso diário; seja pela depredação da flora e da fauna dos rios, mangues e outros corpos d’água... Tem diminuído a disponibilidade da água para consumo e também de peixes, crustáceos e outros bancos de proteínas que sustentavam nossas populações de pescadores, ribeirinhos e populações praieiras. Nesse sentido, é preciso deixar claro que os oceanos, com suas águas salgadas, geram o ciclo das águas doces pelo processo de evaporação, além da quantidade incontável de vidas que dependem da água salgada. Portanto, ela não é menos importante que a água doce. 

O ciclo das águas continua existindo pela evaporação dos oceanos, fonte primária de todo ciclo das águas, mas aquele corpo d’água que estava próximo das populações deixa de existir – escassez quantitativa –, ou fica inapropriado para usos humanos e até para outros usos – escassez qualitativa. É preciso citar ainda a escassez social, isto é, quando a água está ali, tem qualidade, mas está apropriada de modo privado por pessoas ou empresas, impedindo sua utilização por toda a comunidade. 

A escassez qualitativa vem da poluição por todas as formas de dejetos – urbanos, industriais, hospitalares, resíduos de agrotóxicos, mineradoras etc. – fazendo com que nossos mananciais se tornem fontes de doenças e não de vida. 

Esse é um desafio que se coloca para qualquer país civilizado, mas as elites do mundo econômico e político estão de costas para uma questão absolutamente estratégica. 

Um futuro sob interrogação e nossas iniciativas 

Ora, se a floresta amazônica é fundamental na origem do ciclo de nossas águas, e se o Cerrado é fundamental no armazenamento e distribuição dessas águas, a destruição da floresta amazônica e do bioma do Cerrado têm consequências absolutamente previsíveis para grande parte do território nacional e da América Latina. Portanto, a manutenção dessas florestas em pé – e por que alguns dizem que o Cerrado não é uma floresta, assim como a Caatinga? – é elemento fundamental para as gerações futuras, não só em termos socioambientais, mas econômicos. 

Se minério é riqueza, se madeira é riqueza, se soja é riqueza, se gado é riqueza, porque a água e a biodiversidade não o seriam, justamente elas que proporcionam a existência da agricultura e da pecuária? Estamos dizendo claramente que não haverá economia se não houver a Amazônia e o Cerrado. 

E dizemos que, ao mesmo tempo, é imperativo levar à frente a luta pela água como direito fundamental da pessoa humana, contra a privatização, mercantilização da água, enfim, contra o hidronegócio. 

Finalmente, temos que tomar iniciativas de recuperar nascentes, rios, matas ciliares, até mesmo a recomposição florestal de todo um território de bacia, além da captação da água de chuva como no Semiárido, do reuso da água, enfim, do cuidado com a água. Essa já não é mais uma tarefa; é agora uma necessidade. 

Vale a pena fazer um destaque: está mais que claro que a população do sertão semiárido, que se estende por nove estados, do Maranhão até Minas Gerais, enfrentou com menos sofrimento e sobressaltos os efeitos da seca que dura seis anos por causa da implantação da estratégia popular de “Convivência com o Semiárido Brasileiro”. Nascida das práticas sociais e do apoio de cerca de três mil entidades que se uniram na Articulação do Semiárido (ASA), que tem afirmado, desde o início, que “a água de chuva é o segredo da convivência com o Semiárido Brasileiro”7.

A palavra “segredo” tem, nesse caso, muitos sentidos. Pode-se dizer que foi o recado que ouvidos atentos ouviram da própria Caatinga: “Atente-se, amigo e amiga, não sou deserto nem região de seca; cai em meu território quantidade razoável de água de chuva; se quiserem ajudar-me, e ajudar a vocês mesmos, usem sua inteligência para guardar essa água pra quando a chuva faltar”. Pode-se dizer também que as práticas de guardar água em cisternas é o ponto de partida sem o qual a vida para os sertanejos e para o próprio Semiárido é difícil.  

Aprendendo a se relacionar com as chuvas e guardando água, as condições para a vida começam a mudar. A primeira cisterna, que colhe água de chuva dos telhados, abriu caminho para a segunda, que guarda água que escorre de rampas, e serve para garantir o básico de alimentação. E os mutirões, de conhecimento do bioma Caatinga junto com a construção comunitária de cisternas, abriram caminhos para a necessidade de recuperar as sementes e animais típicos do bioma; para formas adequadas de cultivar a terra, chegando aos sistemas agroflorestais; para a agroecologia; para diferentes iniciativas de economia solidária, na roça e nas cidades, com o destaque da valorização dos artesanatos; para a educação contextualizada, incorporando a educação das crianças aos segredos e potencialidades da Caatinga. 

Este conjunto de iniciativas e conhecimentos promovem, na verdade, formas novas de viver e conviver. Vivem e convivem melhor as pessoas, as comunidades, os povos, e todas as pessoas convivem melhor com a natureza da Caatinga semiárida. E o fruto, que, como todo fruto, é ponto de partida, de chegada e de nova partida de processos vitais, é que a própria Caatinga melhora sua vida. O processo de convivência com este bioma ainda não está completo, mas pode-se afirmar com certeza que o Semiárido Brasileiro será um jardim mais vivo e fonte de vida quando todas as pessoas participarem da mudança que a Convivência com o Semiárido significa. 

Esse destaque pode e deve servir de alerta para o Cerrado e para os demais biomas. Ou as pessoas, comunidades e povos de cada bioma retomam sua liberdade, roubada e utilizada pelo sistema de produção e de formas de vida dominadas pelo capitalismo, e reaprendem a ouvir os segredos da Mãe Terra sussurrados em seu berço vivo e fonte de vida e mudam sua forma de viver e conviver, ou a vida do bioma e no bioma irá secando. Não há modelos. Os biomas são únicos, diferentes. As práticas de convivência existentes podem ajudar, mas não dispensam a criatividade e a originalidade.

E vale lembrar: em todos os biomas, mesmo na Amazônia, a água, com diferentes características, é o segredo para a convivência com a Mãe Terra. 

Em tempos tão obscuros como o do Brasil atual, em que somos obrigados todos os dias a discutir questões imediatas de sobrevivência de nossa população, estamos abandonando o raciocínio mais estratégico de futuro. As mudanças atuais, inclusive no campo ambiental, principalmente a partir do governo que se instalou no Brasil atualmente, permitem o avanço da destruição sobre os biomas referidos e de nossos mananciais de água. 

Aqui fica um desafio poderoso aos movimentos sociais, pastorais sociais, populações tradicionais, esses que estão inseridos nesse contexto de destruição e morte: além de perseverarmos nas iniciativas que já temos, de cuidado e de uma nova cultura da água, o que podemos e devemos ainda fazer diante de um desafio gigantesco como esse?

 

Referências 

ACOSTA, Alberto. O bem viver e os direitos da natureza. In: O Bem Viver – uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. 

BARBOSA, Altair Sales. “O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água”. Disponível em: http://www.jornalopcao.com.br/ entrevistas/o-cerrado-esta-extinto-e-isso-leva-ao-fim-dos-rios-e-dos-reser­vatorios-de-agua-16970/. Acesso em 31 de julho de 2017. 

CÁRITAS BRASILEIRA, CPT E FIAN. Água de Chuva – O segredo da Con­vivência com o Semiárido Brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2001. 

CÁRITAS BRASILEIRA, CPT. Bendita água. Brasília: Dia da Água de 2003. 

CNBB. Fraternidade e Água: Água, Fonte de Vida. Campanha da Fraterni­dade, 2004. 

SIQUEIRA FILHO, José Alves de et al. Flora das Caatingas do Rio São Fran­cisco. Rio de Janeiro: Andrea Jakobson Estúdio Editorial Ltda., 2012. 

FRANCISCO, Papa. Laudato Sí’. Edições CNBB. 2015. 

NOBRE, Antônio Donato. Rios Voadores. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=34Y93Ar4tCA. Acesso em 20 de setem­bro de2017. 

Campanha “Sem Cerrado não há Vida”. Disponível em:  

https://www.facebook.com/CampanhaCerrado

 

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