Dessalinizar água no Brasil é admitir fracasso, diz chefe da área em Israel
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Carlos Madeiro
Colaboração para o UOL, em Maceió
20/05/2019
Há 80 anos investindo em gestão e tecnologia para abastecimento de água, Israel se tornou uma referência em uso eficiente e sustentável dos recursos hídricos. O país está localizado em uma das áreas habitadas mais secas do mundo, o que o obriga ao uso de técnicas caras como a dessalinização da água do mar. Essa tecnologia, por sinal, chegou a ser anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) para abastecer o semiárido nordestino.
Atualmente, a ideia parece ter saído do radar governamental. Mas a explicação pode estar na visão dos próprios israelenses sobre a técnica.
Diego Berger, coordenador de projetos internacionais da Mekorot (Companhia Nacional de Água de Israel), afirma que o Brasil não precisa dessa tecnologia, já que no nosso país há água suficiente. "O problema aqui é cultural, vocês têm uma cultura da abundância. E, quando você dessaliniza, você está reconhecendo o fracasso da gestão", diz.
Para ele, o problema brasileiro está no desperdício e na falta de uma melhor gestão. "Com gestão, acredito que vocês vão perceber que não precisam da última tecnologia [dessalinizar a água do mar]. Vocês precisam de uma tecnologia adequada para a realidade de vocês”.
Berger --que é argentino-- explica que Israel reutiliza 85% do esgoto, que responde por metade da água usada para irrigação na agricultura. Diz também que as perdas no país hoje representam apenas 10% --no Brasil esse índice, em 2016, chegou a 38% da água potável, segundo relatório da Rede Brasil do Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas).
"Todo mundo vai em Israel para comprar tecnologia porque acha que tem solução rápida. A gente não está vendendo um programa, um software. Todas as políticas são de longo prazo. Você pode ir lá, comprar uma tecnologia e melhorar um pouco. Mas você tem de fazer a gestão, e isso é a longo prazo", diz.

Diego Berger, coordenador de projetos internacionais da Mekorot (Companhia Nacional de Água de Israel) Imagem: Edilson Omena/Algo Mais Consultoria
Em visita a Maceió na quarta-feira (15) para conversar com produtores e políticos, o diretor concedeu entrevista ao UOL para falar como Israel pode ajudar o Brasil e indicar caminhos para o país vencer a quase eterna crise hídrica do sertão.
"Você tem de ter aqui redução das perdas, utilizar bem as coisas, educar as pessoas", aponta Berger, deixando um conselho: "Vocês têm de resolver isso enquanto tem o recurso".
UOL - O que Israel pode trazer e ensinar ao Brasil na questão hídrica?
Diego Berger - Israel é um semiárido, com média de chuva de 500 mm e regiões mais ao sul com 650 mm [por ano]. A gente tem uma história de 80 anos de desenvolvimento do setor hídrico, e é com isso que a gente pode ajudar. Mas como fazer a gestão? A tecnologia ajuda, mas, se você não tem uma gestão forte, você não pode fazer nada.
E aqui temos boa gestão?
O problema aqui é cultural. Vocês têm uma cultura da abundância. Em Israel, a gente sempre fala que foi abençoado com a falta de recursos, então a gente tem de usar a cabeça. E uma diferença: você vê o valor que as pessoas dão aos recursos, não só à água. Se você tem abundância, não valoriza. O começo de tudo é a gestão, ensinar às pessoas o valor necessário da água.
Mas nosso semiárido tem abundância se comparado a Israel?
Aqui tem mais água. Lá, só metade da água usada agora é subterrânea. A gente está usando mais a água da dessalinização porque já não temos água natural. E como se faz a gestão? A gente reutiliza 85% da água de esgoto, que representa metade da água da usada na agricultura. Somos o país do mundo que tem o maior percentual. Se você não tiver uma gestão mais adequada, você não pode usar água mais cara de dessalinização, não pode introduzir novas tecnologias, porque tudo isso é caro. Então você tem de ter, aqui, redução das perdas, utilizar bem as coisas, educar as pessoas. Em tudo isso a gente pode ajudar.

Imagem: Edilson Omena/Algo Mais Consultoria
Então o senhor não aconselha a usar água do mar aqui no Brasil?
Água de dessalinização é a mais cara que tem. A produção é por volta de 1 dólar o metro cúbico [1.000 litros]. A pergunta é: quando você deve colocar uma água tão cara na rede? Você não pode dessalinizar sem fazer outras coisas. Quando você dessaliniza, você está reconhecendo o fracasso da gestão.
Então pensar isso no Brasil seria um reconhecimento de fracasso?
Primeiro tem fazer uma gestão de tudo e depois pensar em trazer água do mar. Deve-se reduzir as perdas. Antes, lá em Israel, a gente teve um debate: quanto tem de ser a perda máxima nas cidades para se permitir a dessalinização? A gente decidiu que não poderia ser mais de 15%, senão você está botando água muito cara dentro da rede, e ela vai para o subsolo. Em 2015, esse índice era 15%; e agora está em menos de 10%.
O que então o senhor aconselha ao Brasil?
Tem que educar, entender qual a gestão adequada e fazer todos entenderem o valor da água.
Mas isso leva um bom tempo.
Não existem soluções rápidas. Todo mundo vai em Israel para comprar tecnologia porque acha que tem solução rápida. A gente não está vendendo um programa, um software. Todas as políticas são de longo prazo. Você pode ir lá, comprar uma tecnologia e melhorar um pouco. Mas você tem de fazer a gestão, e isso é a longo prazo.
Qual seria o caminho a seguir aqui?
A gestão fará saber qual a tecnologia adequada. Com gestão, acredito que vocês vão perceber que não precisam da última tecnologia [dessalinizar a água do mar]. Possivelmente pode ter lugares isolados que precisem de dessalinização de água do mar ou do subsolo, mas a solução tem de incluir uma mistura de coisa. Vocês precisam de uma tecnologia adequada para a realidade de vocês.
Aqui temos poços dessalinizadores de água subterrânea, vários centros de pesquisa estudam o tema. Temos pessoas capacitadas para melhorar essa gestão, não?
Tem pessoas que sabem fazer, sim. Nos governos, nos estados, há claramente pessoas que sabem e podem ajudar A gente tem uma história de mais de 80 anos nesse processo. O que a gente fez, a gente explica para os outros não cometerem os mesmos erros.
O presidente Bolsonaro foi a Israel recentemente. Existe algum convênio assinado com Israel sobre o tema?
Tem um acordo de cooperação, e a gente vai a cada estado saber se querem fazer algo em conjunto.
E o senhor já viu que aqui tem água suficiente para abastecimento e agricultura?
Eu estava conhecendo aqui [em Alagoas] o Canal do Sertão [pequena transposição do rio São Francisco que leva água a municípios do sertão e agreste alagoano]. A água que tem nesse canal é a mesma que nós usamos para toda a agricultura em Israel --a outra metade é de esgoto. E lá vivem 9 milhões de pessoas [Alagoas tem 3,3 milhões]. Ou seja, vocês podem fazer muita coisa, vocês têm muita água. E podem fazer muita coisa em todo o Nordeste. O Brasil é um dos países com mais água do mundo.
O que então falta e o que sugere para começarmos?
O problema é cultural, a gestão é uma reflexo da cultura. Você deve estar sempre buscando a melhor forma de fazer essa gestão. Com os anos, você tem mais gente, mais consumo, mais poluição. Vocês têm de resolver isso enquanto tem o recurso. O problema do esgoto, por exemplo. Nem todo o Brasil está conectado à rede de esgoto. Qual a influência na qualidade de vida das pessoas não ter esgoto e água em todo lugar? Isso tem uma influência na expectativa de vida, está interligado com a economia.
O que poderia ser feito aqui no nosso semiárido semelhante ao que foi feito em Israel?
“Em Israel, o setor hídrico é fechado, não usamos orçamento do estado. Todo dinheiro vem da conta de água, mas todo mundo paga mesmo preço --não importa se é água de dessalinização ou do subsolo. Socialmente esse modelo é muito melhor, mas você parte do princípio de que um terço desse dinheiro é para desenvolver novos projetos. Todo planejamento é independente do governo. Senão for assim, você vai ter sempre uma emergência que vai tirar dinheiro de lá”.
Pelo que o senhor diz, ciência e gestão são fundamentais para o país superar essa dificuldade hídrica?
Tem de investir em tudo, mas você só vai investir em tecnologia quando tem necessidade. Quando foi inventado em Israel a irrigação por gotejamento? Quando foi necessário, pela escassez, não por outra coisa. Onde você tem a escassez, tem gente que vai estudar para tentar encontrar soluções.
COMENTÁRIOS
João Suassuna – Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
É preciso esclarecer algumas questões nessa matéria. Em primeiro lugar, Diego Berger, coordenador de projetos internacionais da Companhia Nacional de Água de Israel, está coberto de razão quando menciona à incipiente gestão dos recursos hídricos aqui no Brasil. Isso é um fato inconteste. Mas ele precisava conhecer melhor a geologia do Semiárido nordestino para admitir ou mesmo afirmar, como “fracasso”, o uso da dessalinização em nosso país. Ele trata essa questão como se a dessalinização aqui praticada fosse, única e exclusivamente, como aquela existente em Israel, onde são processados grandes volumes de águas do mar, em gigantescas usinas dessalinizadoras, a um custo demasiadamente caro. Aqui no Brasil essa tecnologia é antieconômica, principalmente se a água dessalinizada for destinada ao abastecimento (potabilidade) das populações residentes na região semiárida, situada, na maioria das vezes, a grandes distâncias da orla marítima. Nesse sentido, no meu modo de entender, faltaram ao Diego Berger, os conhecimentos necessários sobre a geologia do Nordeste, para dar-lhe maior embasamento em sua análise, principalmente em relação ao uso das águas interiores da região. 70% da superfície do semiárido do país são caracterizados por uma geologia cristalina, onde as rochas que originam os solos estão praticamente à superfície, chegando ao afloramento em alguns pontos. Esse fator geológico induz a escoamentos superficiais intensos e pouca quantidade de água consegue se infiltrar no substrato, resultando, com isso, em deficiente armazenamento. A existência do precioso líquido, no subsolo do Nordeste seco, só se dá sob duas possibilidades: nas fraturas das rochas, e nos aluviões próximos a rios e riachos. Na maioria das vezes, as fontes hídricas ali existentes têm baixas vazões, e como se isso não bastasse, as águas se mineralizam com muita facilidade, tornando-se salobras. Essa é a realidade geológica do semiárido nordestino: as águas são poucas e de má qualidade. Para uma maior visibilidade da ordem de grandeza de fontes hídricas de subsolo existentes no cristalino nordestino, trabalhos realizados em 2008 dão conta da existência de cerca de 150 mil poços tubulares escavados, dos quais Aldo Rebouças estimou em cerca de 30 mil, os perfurados em zonas fraturadas, com baixas vazões (5 m³/h) e salinidade média da água da ordem de 2 mil mg/l, ou seja, com águas muitas vezes imprestáveis para consumo humano, devido ao alto teor salino. Essas características do ambiente natural nordestino deveriam ser consideradas na avaliação de Diego Berger, para suas conclusões em relação ao “fracasso” do caso brasileiro. A possibilidade de uso das águas desse universo de 150 mil poços instalados (atualmente existe um quantitativo bem maior do que esse aqui mencionado) é onde reside à verdadeira importância da existência do Programa de Dessalinização por osmose reversa no semiárido nordestino, que tem se revestido como peça fundamental para a inserção, no meio de consumo, do uso de expressivos volumes que anteriormente estavam estocados sem a menor serventia. Problemas existiram e ainda existem nos referidos programas, principalmente na manutenção dos equipamentos, na maioria das vezes, pela necessidade da importação de caríssimas peças, como é o caso das membranas filtrantes, que vêm da Alemanha. O atual governo brasileiro deveria voltar sua atenção para a continuidade dos programas de dessalinização por osmose reversa, procurando, sempre que possível, incentivar o desenvolvimento de peças nacionais, adequando-as a dessalinizadores anteriormente paralisados, por falta de manutenção. Nesse sentido, a Universidade Federal de Campina Grande e a Universidade de São Paulo desenvolveram membranas tupiniquins, de baixo custo, que poderão viabilizar o funcionamento de dezenas de equipamentos anteriormente paralisados. Para finalizar, é importante que se dê continuidade ao programa de dessalinização, mas com essa visão mais abrangente, de tornar possível o uso das águas de qualidade inferior, para uma população, na região semiárida, que não para de crescer.
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