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Transposição do rio São Francisco: licenciamento do IBAMA, artigo de Henrique Cortez

Publicado: Quinta, 06 de Junho de 2019, 10h00 | Última atualização em Quinta, 06 de Junho de 2019, 10h00 | Acessos: 577

28/04/2005

 

Era mais do que óbvio que o IBAMA iria conceder a licença prévia para a

transposição. Sendo um projeto do governo, inclusive com o apoio formal

e público da ministra Marina Silva, não poderia ter outro desfecho.

 

A questão essencial não é hídrica, no sentido técnico, mas econômica e

política. O argumento de fundo para a transposição é “levar água a quem

tem sede”. A validade do projeto, portanto, depende da veracidade do

argumento. O argumento “levar água a quem tem sede” é verdadeiro? É

evidente que não.

 

As necessidades especiais da população do semi-árido são mais do que

justas e para atendê-las é necessário romper com as simplistas e

ineficientes megaobras na região e compreender que é possível

desenvolver modelos de convivência com a seca, tendo como resultado o

combate ao maior flagelo da região - a fome.

 

A fome no semi-árido está claramente associada à seca e, mais

precisamente, ao acesso à água. Água para beber, para irrigar, para

viver dignamente.

 

O acesso à água é a chave para o combate à fome. Mas esta observação não

é uma emocionada defesa da transposição do rio São Francisco. Ao

contrário, embasa minha oposição aos equívocos deste projeto porque, na

realidade, pouco ou nada significará para milhões de pessoas que

continuarão sem acesso à água.

 

Este projeto de transposição é, na essência e no conceito, o mesmo do

governo Fernando Henrique Cardoso, que foi concebido para oferecer

segurança hídrica aos grandes reservatórios, permitindo sua operação com

maiores níveis médios, independente da recarga pluvial. Tendo os

reservatórios como destino final, o projeto demonstra a manutenção do

histórico modelo de uso dos reservatórios - 70% para agricultura

irrigada, 26% para uso dos grandes centros urbanos e apenas os 4%

restantes para o uso difuso, ou seja, para a população isolada e

dispersa. E isto em apenas 5% do semi-árido.

 

A agricultura irrigada, neste caso, é a fruticultura e a carcinocultura,

o rosto do agronegócio exportador no semi-árido. O agronegócio já está

na região há mais de 20 anos e pouco ou nada contribuiu para a geração

de emprego e renda ou de padrões mínimos de verdadeira inclusão social.

 

Esta transposição segue a lógica centenária de que a seca no semi-árido

pode ser combatida com grandes intervenções, grandes obras e, agora, com

um salvacionista programa de obras, tão monumental quanto o problema da

seca.

 

Nisto está a essência da criação do Departamento Nacional de Obras

Contra a Seca – DNOCS, em 1945, com a concepção de combate à seca

através de obras, principalmente a construção de açudes e/ou reservatórios.

 

O DNOCS já construiu 291 açudes públicos, armazenando mais de 15,3

bilhões de metros cúbicos de água. Na verdade, o conjunto de açudes e

reservatórios, públicos e privados, do Nordeste possuem potencial de

armazenamento superior a 30 bilhões de metros cúbicos de água. Este

volume potencial de armazenamento já seria, em tese, mais do que

suficiente para atender à demanda da população do semi-árido.

 

O semi-árido brasileiro já conta com uma impressionante rede de

reservatórios e adutoras, mas pouco mudou para a maioria da população

sertaneja, mesmo depois de 60 anos da criação do DNOCS, que por sinal é

subordinado ao Ministério da Integração Nacional.

 

No entanto, mesmo com uma significativa açudagem, ainda são freqüentes

as imagens de açudes quase vazios, mas, ainda assim, com potentes

bombas, captado grandes volumes de água para irrigação, mesmo com a

maior parte da população do entorno sedenta e dependendo de carros e

jegues-pipa, em clara violação da lógica, da ética e da legislação.

 

Ainda hoje muitos dos reservatórios perdidos no inicio de 2004 não foram

recuperados e outros tantos possuem sérios problemas de segurança por

falta de manutenção, sempre sob o argumento da falta de verbas.

 

Não basta um gigantesco esforço para a construção de açudes e barragens,

porque é absolutamente necessário um modelo de gerenciamento que garanta

a sua eficiência, sua segurança e seu uso racional. Lamentavelmente isto

ainda não foi sequer debatido, quanto mais solucionado.

 

Ao longo do tempo e dos mais diversos governos federais, ficou

demonstrado que, independente dos problemas crônicos de gerenciamento da

açudagem, este conjunto de obras não atendeu à sua razão primeira –

garantir à população do semi-árido uma convivência minimamente digna com

a seca.

 

Em resposta ao fracasso das grandes obras contra a seca, retoma-se a

proposta de solucionar o problema com uma mega-obra. Pena que ela não vá

levar água aos que tem sede, porque não é este o seu objetivo. Ao ser

concebida para a segurança hídrica dos reservatórios, a transposição

servirá ao maior usuário dos reservatórios e adutoras – a agricultura

irrigada. Ela garantirá os crescentes volumes de água exigidos pelo

agronegócio exportador.

 

Este projeto, portanto, como todas as outras grandes obras que

pretensamente combateriam a seca, não atende aos maiores desafios da

região: a regularização fundiária, o acesso à água e a consolidação de

um modelo de desenvolvimento baseado na agricultura familiar.

 

Nas regiões Sul e Sudeste, os programas de convivência com a seca no

semi-árido são pouco conhecidos. O mais importante e significativo é o

P1MC – Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com

o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais, coordenado pela Articulação

no Semi-Árido Brasileiro – ASA (www.asabrasil.org.br). O programa P1MC,

lançado em 2000, tem como meta construir, em cinco anos, um milhão de

cisternas de placas na região, que proporcionarão água limpa e de

qualidade para cinco milhões de pessoas. O programa já construiu mais de

54 mil cisternas, que beneficiam 260 mil pessoas.

 

Sua importância pode ser compreendida a partir do fato que uma cisterna,

com 15 mil litros em média, pode garantir o fornecimento de água para

uma família de 5 pessoas por 8 meses, que é o período normal de estiagem

na região. Um amplo e bem organizado programa de apoio à construção de

cisternas, com plena integração federal – estadual – municipal, não

apenas seria uma micro-solução importante para a sobrevivência do

sertanejo, como também, ao eliminar a indústria dos carros e

jegues-pipa, seria um grande golpe no modelo mais demagógico do

coronelismo.

 

Pessoalmente, não acredito em soluções únicas e simples para problemas

complexos e no semi-árido não é diferente. O semi-árido precisa de

políticas públicas eficazes, concebidas de forma integrada e sistêmica,

que incluam incontáveis experiências de convivência com a seca. A

convivência com a seca exige várias ações e projetos, exige um eficaz

gerenciamento da açudagem e a integração com outros programas públicos

ou privados, dentre os quais as cisternas “de beber”, as cisternas

comunitárias, as cisternas de produção, micro-barragens, as barragens

subterrâneas, as mandalas, e por aí vai. Mas, acima de tudo, é

necessário garantir o acesso à água.

 

Um projeto equivocado, como a transposição do rio São Francisco,

atenderá os privilegiados de sempre e manterá as freqüentes imagens de

rios completamente secos, de açudes exauridos e de ricas áreas irrigadas

ao lado da mais impensável aridez, simplesmente porque não visa criar

garantias de acesso à água.

 

Se for para levar água a quem já tem acesso não há necessidade de

qualquer projeto, bastando aumentar a eficiência no gerenciamento e nos

usos da açudagem disponível. Para isto, não é necessário fazer nada

muito complicado, muito menos um projeto como a transposição do rio São

Francisco.

 

É necessário e fundamental que se foque nas efetivas soluções de

convivência com a seca, ou manteremos a atual lógica perversa, em que

vemos adutoras tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes de tantos.

Não adianta tangenciar o problema - precisamos garantir o acesso à água.

O acesso à cidadania.

 

Para nós o acesso à água é tão simples: abrir uma torneira. Para milhões

de brasileiros, continuará um sonho distante.

 

Henrique Cortez - Editor Chefe do EcoDebate

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